Desde 1982 que dia 16 agosto é dia de meu aniversário e eu amo aniversário, sobretudo o meu kkk. Mas em 2023, no dia 14 de agosto, dois dias antes de fazer 41 anos, eu reli sem querer (quero dizer que fui pega de surpresa durante a realização de um frila) o poema Menstruation at 40 (ou Menstruação aos 40), de Anne Sexton, e dei uma BELA endoidada.
Nos primeiros versos, ela diz:
I was thinking of a son.
The womb is not a clock
nor a bell tolling,
but in the eleventh month of its life
I feel the November
of the body as well as of the calendar.
In two days it will be my birthday
and as always the earth is done with its harvest.
... que eu traduziria assim:
Eu pensava num filho.
O útero não é relógio
Nem toque de sino
Mas no outono de sua vida
Eu sinto o novembro
Do corpo, do calendário.
Daqui a dois dias é meu aniversário
E como sempre a terra encerra a sua safra.
A última vez que eu tinha lido esse poema foi em 2015, eu tinha 33 anos, e a questão de ter ou não ter filhos se apresentava, mas não ainda como um dilema. E o que definitivamente não se apresentava para mim, sequer como horizonte, era o tema da fertilidade – ou melhor, o de deixar de ser fértil. De uma maneira meio irracional, ou até como manifestação de um etarismo internalizado, eu assemelho infertilidade como uma espécie de morte. É feio falar assim, eu sei, mas também não é fácil viver esse processo – toda vez que menstruo, alguma coisa in the back of my head fica tensa, pensando “será que essa foi a última vez?”.
Quando assisti o documentário sobre Mujica, a coisa que mais bateu em mim foi quando ele disse que se arrependia de não ter tido filhos biológicos. Eu tomei um susto, eu não esperava ouvir isso. Acho que o que me pegou de surpresa foi ele des-confirmar o que eu tinha tomado para mim como consolo: eu achava que eu ser militante política organizada podia, ao menos em grande parte, preencher a ausência de filhos biológicos. Até ouvi-lo falar isso, eu tinha só certeza de que a vida militante traz relações de camaradagem tão profundas, que a maternidade se torna prescindível. Pensava também que se dedicar à superação do capitalismo via transição socialista para o comunismo é uma forma de dar à luz não uma vida, mas uma forma de vida coletiva (ainda penso assim).
Mas é claro que não é tão simples. Eu estava pra fazer 39 anos quando assisti o documentário e foi nessa fase, dentro do âmbito terapêutico, que processei a decisão e vivi o luto do não-ter-filhos, enterrei a ideia de gestar e segui a adiante.
Dia 16 de agosto de 2023 passou sem grandes sobressaltos, foi bonito – ironicamente ou não, celebrei com meus companheiros de militância, de quem às vezes me sinto mãe, às vezes filha, às vezes irmã, sempre camarada. No dia seguinte tive terapia e, ao relatar o novo susto (dessa vez, o da leitura inesperada do poema de Anne sobre menstruação na meia-idade), minha psicóloga perguntou como eu tenho sonhado – não lembro de muito, respondi, mas mencionei um sonho em que eu tinha escrito (ou tatuado) a palavra RATO no lado esquerdo da barriga (na barriga, onde se gesta, kkk, #fróidsplica). Ela pediu para eu elaborar o sonho, mesmo sem lembrar dele por completo. Falei um monte de groselha sobre como ratos são empáticos e inteligentes (e são mesmo, mas eu estava era fugindo da pergunta). Só depois da sessão terminada, me lembrei do poema Rats live on no evil star, também de Anne. Tomei mais um susto, porque o sonho com rato aconteceu antes da leitura de Menstruação aos 40.
E aí decidi traduzir o poema para o recifês:
SÃO RATOS SÃOS EM ROTAS RÔTAS
Um palíndromo visto num chiqueiro na beira do Rio BeberibeFoi só depois que Adão partiu sua costela em duas
e fez dela janta
e, da cintura pra cima,
feito uma mãe idosa,
começou a questionar o divino,
que Eva entrou em cena.
Eva saiu daquela costela feito um passarinho brabo.
Ela entrou no palco como um bacurau que conseguiu, de repente,
fugir da gaiola.
E da gaiola sai Eva,
em desabalada carreira, em disparada.
Vestida com a própria pele, tipo o sol,
não troca os próprios pés por nada.Deus pegou seu binóculo
e gostou do que viu.Enquanto isso Adão, sentado feito um advogado,
lia o manual da vida.
Só seus olhos estavam vivos, ainda.
Feito fornalha, em brasa.Só depois Adão e Eva se montaram,
galoparam até à macieira.
Fizeram barulhinho de maré
e deixaram escorrer o suco da safadeza.Por causa desse mesmo pé de fruta
Eva deu à luz a mais sinistra das criaturas
com o buxo cheio de lombriga
e cabelão d’O Cabeleira.
O bicho tinha olhos que eram pura cicuta
e os dentes à lima afiados.
Foi assim o parto de Eva.
Um ato antinatural:
ela pariu um rato
que saiu dela como escorrega da ostra a pérola.
Era feio, claro,
mas disso Eva não sabia
e quando ele morreu, prematuro,
ela colocou o corpinho dele
na parte do jardim de infância chamado RATO.Agora todos nós, amaldiçoados,
com nossas bocas fofoqueiras e olhos preocupados
morremos antes do tempo
mas não vamos pra um céu ou um inferno qualquer
somos colocados na ROTA RÔTA
que é tão longa quanto a Avenida Caxangá
e tão animada quanto uma banda de pife.
Colocam a gente lá, ao lado dos ladrões de galinha,
porque o mais pobre de nós todos
merece sorrir para sempre, inocente
como um melão de São Caetano.
Anne Sexton é talvez uma das minhas maiores influências e é, sem dúvida, a maior influência de um livro meu chamado o martelo. A edição brasileira, que saiu pela Garupa em 2017, trouxe quatro poemas que não entraram na edição original do livro (idealizada por mim e publicada pela editora Douda Correria, de Lisboa, alguns meses antes), e suprimiu três poemas da edição original: o meio-confesso, el martillo e os órgãos inúteis.
Se o martelo é um livro sobre violência sexualizada, el martillo é um poema sobre a violência da linguagem (e consequentemente da poesia). Entre outras inspirações, ele bebe do palíndromo de Anne Sexton. Publico o poema aqui porque ele é inédito no Brasil, e diz assim:
el martillo
llena de coroinhas
fetiche branco
incensos ramos
insone em sevilha
adília mulher
vi joão maravilhapedra cabral
métrica neto
estudando acróstico
o teor é retopoéticas
sílabas
sonido
ritmoverso e fixação
lorca e bolaño
pasolini e celan
el martillo
aldabónpaso é sapo
andor é ronda
martelo e martírio
dode é
cassílabo
dodi
al-fayed
princesa in-diana
gitana anagramaanagrama
anne sexton
eu sei o que é
são ratos
sãos (em estrela) rota
mas como não sei
contar sílaba conto
annedota: era uma vez
Humboldt e sua
rôla lôra.
Reler esse poema me fez cair a ficha em o quanto de metáforas com pássaros estão presentes na poética de Anne Sexton – muitas, mesmo. Me lembrei de outro poema dela, The fury of the cocks, que inspirou outro poema de o martelo, chamado a briga de galo. Deste poema de Anne também fiz uma tradução (ornitológica, obviamente) para o recifês:
A fúria das rôlas
Mai ‘pia pra elas
se amostrando de manhã,
carinha de anjo,
enroladinhas, tristes,
amuado animal,
sendo que ontem merminho
lá estavam elas,
zabumbando.
Aí o dia nasce
e o solzão imenso
é carreta maternal,
é de rachar.
Sendo que ontem de noite
a rôla sabia o caminho da gaiola,
dura feito martelo,
furando forte,
botando pra lascar.
Kkk
Hoje tá mansinha,
uma rolinha
piando macio.
A mulher é a casa.
O homem, a torre da igreja.
Quando trepam são divinos.
Quando tretam são divinos.
Quando roncam são divinos.
De manhã, manteiga no cuscuz.
Pouco conversam.
Divinos, ainda.
Todas as rôlas do mundo são divinas,
peruando, peruando, peruando,
atrás de belas periquitas.
o martelo está esgotado há alguns anos, mas vem aí o primeiro livro de Anne Sexton no Brasil, que será publicado pela Relicário: Compaixão é uma antologia editada pela filha da poeta, Linda Gray Sexton, com traduções de Bruna Beber (fenomenais, se permitem o spoiler).
Para celebrar tudo aquilo que passa, a playlist desse mês é dedicada aos passarinhos:
Ou então você pode ficar com meia hora de rola com Bethania!
A roleira que vos escreve, por aí:
. Em 2016 sairam vários poemas de Anne Sexton, traduzidos por mim e Rafael Mantovani, na revista Parêntesis, de Lubi Prates;
. No mesmo ano, saiu minha tradução para o poema For my lover returning to his wife, no Suplemento Pernambuco;
. Nesse link estão todas as vezes que mencionei Anne Sexton no finado vodcabarata, incluindo um pequeno ensaio de Antônio La Carne (que foi, aliás, quem me apresentou a ela)! Obrigada, Antônio;
. Foi também no dia do meu aniversário que saiu a notícia de que meu próximo livro, ASMA, sai pela Nós em 2024, parte do projeto editorial que Schneider Carpeggiani leva para a casa de Simone Paulino.
Lidos ou relidos do mês:
. Franklin Távora, O Cabeleira (1876) (São Paulo: Martin Claret, 2014);
. Adília Lopes, Manhã (Porto: Assírio & Alvim, 2015);
. Anne Sexton, org. Linda Gray Sexton, Mercies (Londres: Penguin Books, 2020).
Queria entrar num teletransporte agora pra sentar aí pra tomar um café contigo, porque tenho tanto pra falar sobre esse texto que nem sei mais de nada.
Seu modo de interpretar poemas é uma das minhas inspirações para experimentar traduzir... Eis me aqui estudando letras e sonhando em traduzir puisia. Anne rainha ❤️ besos