Depois que Sinwar foi morto, em 16 de outubro de 2024, vários tuítes pipocaram na Alemanha comentando o caso, de forma escrotamente irônica. “Será que também não deveríamos sair às ruas distribuindo pirulitos?”, perguntavam os internautas pró-genocídio, em referência ao fato de que algumas pessoas saíram nas ruas de Berlim distribuindo doces, celebrando os ataques do Hamas a civis israelenses em 7 de outubro de 2023.
Uma resposta a um desses tuítes me chamou a atenção: “não deveríamos, porque nós judeus não somos animais”
A frase, solta, precisa de contexto: equivaler a população da Palestina a animais tem sido uma constante, da Nakba em 1948 ao genocídio iniciado em 2023. David Ben-Gurion, que foi o primeiro primeiro-ministro de Israel, disse: “Para nós, eles [os Palestinos] são como jumentos”. Menachem Begin, o sexto primeiro-ministro, comparou Palestinos a baratas; o general Rafael Eitan comparou-os a cobras; o historiador israelense Benny Morris a animais – que foi a mesma comparação usada em 2023 pelo embaixador de Israel na Alemanha, para quem os Palestinos são “animais sanguinários” e pelo atual ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, também em 2023: “Estamos lutando contra animais”.
Igualar os Palestinos a animais – ou seja, desumanizá-los – seria aquilo que justificaria sua expulsão do seu território e seu extermínio (que é, afinal, o que animais humanos fazem com animais não-humanos, e também com povos indígenas mundo afora, em seus projetos coloniais “civilizatórios”). O discurso de animalização do povo Palestino já é tão utilizado, que tem sua própria entrada no wikipedia.
Uma reação não exatamente incorreta a essas assunções seria dizer “Palestinos não são animais” – o que, claro, está correto mas que, de certa forma, nos coloca imediatamente no lugar de seres superiores. Será que o enfoque deveria ser mesmo este? O ponto central não deveria ser o de que o direito à vida de todos os animais (humanos e não-humanos) deve ser garantido, para além da letra da lei de declaração universal de direitos humanos?
Outra população que conhece bem o que é ser igualada a animais é a Nordestina: do “homem gabiru” (cuja família foi espetacularizada pela imprensa brasileira, e injustamente tratada como uma sub-raça, não como consequência do capitalismo made in Brazil) a Bolsonaro nos oferecendo capim: a retórica desumanizante serve para desqualificar a importância da nossa morte. Mas também da morte em massa de populações humanas ou não-humanas no mundo todo: enquanto jumentos são exterminados no Brasil, Palestinos são igualados a jumentos e exterminados na Faixa de Gaza. Estimas-se que entre 1979-1983, mais de 1 milhão de nordestinos morreram de fome, causada não pela seca, mas pelo latifúndio - evento esquecido ou ignorado pelo nosso país, mas que é chamado entre pesquisadores do assunto de Genocídio do Nordeste. Quarenta anos depois, em 2024, Israel usa a fome como arma de guerra para matar Palestinos. Shame on us.
Um dos atributos mais humanizantes que pode haver é a solidariedade. Estudos científicos comprovaram, por exemplo, que ratos sentem empatia por outros ratos em situacao de sofrimento. Os jumentos selvagens da Mongólia são os engenheiros hídricos da área do deserto de Gobi, identificando agua subterrânea e cavando micro açudes que podem ser usados por várias espécies locais, não somente pelos próprios jumentos. Isso sem contar nas formas de vida sócio-matriarcal de orcas, elefantes e abelhas. A perspectiva mais humanista que podemos ter é aquela que defende, incondicionalmente, o direito à vida de todas as coisas que existem. Lutar pela humanização dos desumanizados (sejam eles animais humanos ou não-humanos) é uma das tarefas centrais do nosso tempo. Uma das qualidades mais humanizantes que pode haver é o cuidado mútuo interespécie – e a poesia. Traduzi e compartilho com vocês dois poemas sublimes, absolutamente sublimes, de Fady Joudah, poeta estadunidense de origem Palestina, que são exatamente sobre isso.
Mimesis
(do livro Alight, 2013)Minha filha
não faria mal nem sequer a uma aranha
que fez uma teia
entre os guidons da sua bicicleta
durante duas semanas
minha filha aguardou
até que a aranha fosse emboraSe você destruir a teia, eu disse
a aranha simplesmente saberá
que ela não é benvinda aqui
e aí você pode ir andar de bikeMinha filha disse mas é assim
que pessoas se tornam refugiadas
num é?
Mimesis
(do livro […], 2024)Essa manhã, sei lá eu como
um sapinho de uma polegadaentrou em casa
enquanto animais humanoseram exterminados ao vivo na TV.
Eu senti o pavor do sapinho.Ele se escondeu no escuro do meu sapato
que estava embaixo do sofá.Meu filho observou tudo.
Gentil e pacientemente
eu, de joelhos,
procurei o sapinhocom o coração partido
e uma sacola de plástico.Consegui convencê-lo a se deixar
pegar, soltei o sapinho
no quintal
e comecei a chorar.
Em Gaza, jumentos trabalham fazendo vez de ambulância, sob as piores condições de trabalho não-humano. Se você tiver condições, por favor considere fazer doações à iniciativa que tenta cuidar deles: https://www.safehaven4donkeys.org/gaza/
Outra iniciativa que vale a pena ajudar é o abrigo de animais Animal Rescuing in Lebanon, que vem cuidando de animais no Líbano. Aqui o link direto para doação via paypal.
No Brasil, você pode fazer uma doação via Pix para o abrigo de jumentos Menino Vaqueiro, no Ceará, da minha heroína Márcia. Eu já doei para todos esses, você pode confiar que o seu dinheiro vai ser bem utilizado.
Meu coração todinho. Adoro suas traduções....