23 de outubro de 2024: o governo da Alemanha confirmou, numa coletiva de imprensa, que o navio Kathrin (que estava bloqueado na costa da Namíbia graças aos esforços de ativistas e do governo) seguiu viagem, carregando explosivos militares para serem usados por Israel, para o genocídio de 2,3 milhões de palestinos em Gaza. Além da Namíbia, Angola e Malta já haviam negado a atracação do navio em seus portos, citando decisões da Corte Internacional de Justiça e do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Portugal retirou a bandeira do navio, dizendo que não queria ser acusado de cumplicidade no genocídio. A Alemanha, então, ofereceu sua bandeira para que o navio siga viagem e os explosivos cheguem a Israel. Estamos falando de um país cuja história de genocídio foi da África até à Europa, e que desafia, mais uma vez, a determinação da Corte Internacional de Justiça, apoiando mais um genocídio, dessa vez em Gaza.
No bojo desse horror, traduzi dois poemas (um de 2024 e um de 2021) do poeta palestino Mohammed El-Kurd.
Hoje morreremos em família*
No hospital, a enfermeira está indignada
com a visita surpresa: seu marido
na maca
ele chegou no banco de trás de um táxi –
carro funerário improvisado.
Não há ambulâncias suficientes em Gaza
e há mais gente morta do que deveria haver.
Elá está lívida. Homens nunca obedecem
eu disse pra você esperar meu turno acabar
porque primeiro eu preciso cuidar dos feridos
eu disse pra você que hoje morreríamos em família
era pra gente ter morrido juntos
em família.
*esse poema foi publicado em inglês na revista Poetry Review, em abril de 2024. A versão em inglês foi traduzida por mim em outubro de 2024.
Nascido no dia da Nakba**
Tua crueldade reescreveu minha autobiografia
fez das tripas piada
fez da lâmina língua
e fez da boca a mãe de um
trovãoTua crueldade me disse para
persistirOlhe
EscuteEu nasci no aniversário de 50 anos da Nakba
de uma mãe que colheu azeitonas
e figos
e outros versos do Alcorão
Wattine wal zaytoun
Meu nome: uma bomba num quarto branco
uma suspeita ambulante
no aeroporto
política que não dá opçãoEu nasci no aniversário de 50 anos da Nakba
e fora do quarto do hospital protestos
textura de borracha queimada
rostos envoltos em Kuffiyah, corpos nus
pedras atiradas em tanques
tanques impressos com bandeiras dos EUA
Terras
cheiro de gás lacrimogêneo, céu decorado com
balas de borracha
alguns corpos baleados, mortos, morreram
Números em uma manchete
eu e
minha irmã
nascemos
nascer dura mais que a morte
na Palestina, a morte é repentina
instantânea
constante
acontece entre uma inspiração e outra
Eu nasci cercado de poesia
no aniversário de 50 anos
os cantos de libertação do lado de fora do hospital
diziam à minha mãe
para persistir
**Esse poema foi intitulado primeiro como My Nakba birthday (“Meu aniversário na Nakba”, em português), aparecendo primeiro no disco de poesia falada Bellydancing on Wounds, de 2019. No livro de estreia de El-Kurd, Rifqa, de 2021, o poema aparece com o título Born on Nakba day, que foi a base da minha tradução. Rifqa é o nome da avó do poeta que, todos os dias quando ele voltava da escola, recebia o pequeno El-Kurd na porta de sua casa, com um buquê de jasmim para ele. Sobre o livro, a editora diz: “Rifqa é mais velha que o próprio estado de Israel e pode ser vista como um ícone da resiliência palestina. Com sagacidade afiada e brilhante clareza moral, El-Kurd expõe a brutalidade do colonialismo israelense. Seus poemas traçam o exílio de Rifqa de Haifa até a atual desapropriação de sua família em Sheikh Jarrah, Jerusalém, expondo o horror cíclico e implacável da Nakba. A coleção de estreia de El-Kurd mostra definitivamente que a luta palestina é uma revolução, até a vitória”.
Na resenha do livro publicada em 2021 na Los Angeles Review of Books, a poeta estadunidense de origem palestina Summer Farah fala desse poema assim:
O evento do nascimento do poeta deve ser percebido pelo leitor e por seu povo como algo espetacular. [...] Como a Nakba, a morte palestina é contínua, e como a Nakba, a resistência palestina também é. [...] El-Kurd produz uma história de nascimento, na qual o narrador está ciente do mundo no qual está nascendo — ele não é um “personagem principal”. Em vez disso, El-Kurd elegantemente dobra sua narrativa pessoal para o coletivo. O poema termina com o povo dizendo “à minha mãe / para persistir” — o trabalho, a vida, também são revoluções. A criação do que é público, neste poema, é deliberada e cuidadosa. Uma marca registrada deste livro é, sem dúvida, sua autoconsciência do ato de escrever — é necessário estar hiperconsciente de quem está lendo e de como está vendo seu colonizador, que tem o exército mais forte do mundo ao seu lado.
Para a tradução, tive que fazer algumas escolhas que talvez sejam insuficientes. “[to] push trhough” pode ser interpretado como suportar alguma coisa até sua superação, enquanto “[to] push” (literalmente, empurre/empurrar) é o que se diz a uma mulher em trabalho de parto. Na falta de uma palavra em comum às duas situações, usei “persistir” na segunda e na última estrofes. “Resistir” seria uma outra opção, mas como essa palavra vem carregada de significados políticos mais complexos, imaginei que El-Kurd teria usado a palavra “resist”, caso quisesse dizer isso.
muito obrigada por trazer esses poemas, Adelaide. o primeiro cortou meu coração.