eu quero ser um véi que nem vovô
"para aqueles de nós que nunca herdarão dinheiro, terra ou imóveis, as pessoas que nos moldam são a nossa riqueza"
Nos fundos da casa de Gravatá do Jaburu vovô mantinha, em cima de um batente de cimento queimado que ficava ao lado da cisterna, uma bacia de alumínio. Na parede, um espelhinho daqueles laranja, de plástico, do tamanho de um rosto. Era nessa espécie de penteadeira rústica que vovô fazia sua toalete matinal: lavava o rosto na água limpa da bacia, pra depois fazer a barba e raspar os cabelos do peito, que detestava. Assim, lindo, barbeado e cheiroso, seguia seu dia de agricultor aposentado.
A milhares de quilômetros de distância, outra toalete acontecia: aos domingos, Vólia Asfora, filha de Permínio, aproveitava os almoços em família para retocar o corte do bigode do pai, “aproveitando a luz natural que entrava pela varanda”. As aspas são de Jô Asfora, neta dele, em conversa via ZAP.

Eu, Jô e Larissa, também neta de Permínio Asfora, passamos alguns dias trocando impressões sobre nossos queridos avôs. A ideia foi de Jô, que se pegou pensando na encruzilhada onde nos encontramos: de um lado o avô dela, Permínio, escritor; do outro, meu avô, Raimundo, leitor dele. O dela foi apoiador incansável da mesma luta do meu avô, agricultor familiar do Alto Capibaribe, a dizer: o direito à terra, trabalho e pão. O dela, romancista premiado, com diploma em direito, era o escritor preferido do meu, que só estudou até a alfabetização, mas amava ler. E nos incentivava a ler.
Quando Jô falou dos encontros de domingo, onde Vólia virava barbeira de Permínio, me lembrei de um pequeno ritual que eu mesma tinha com vovô: ele sentava na cabeira de balanço de macarrão, eu jogava uma pitada de farinha na cabeça dele e ficava “catando piolho”. Ele adorava esse cafuné, e tirava altos cochilos enquanto eu ficava catando, entre os fios de cabelo crespo e grisalho, os grãos de farinha.

As netas de Permínio também se lembram de outros rituais. Jô se recorda do hábito “bem árabe” de Permínio, de lanchar rabanete com sal, e se lembra também de suas caminhadas diárias. Já Larissa conta que ia almoçar na casa dos avós Permínio e Cacilda uma vez na semana, e desses encontros vêm várias memórias. Uma muito fofa é essa, que Larissa conta: “Ele adorava conversar, principalmente sobre literatura. E eu adorava ouvi-lo. Estava sempre trazendo suas lembranças e volta e meia comentava que tinha vontade de escrever um livro de memórias. Minha avó, ao ouvir isso, bem gaiata, retrucava: ‘Oxi, Permínio! Você já não lembra mais de nada. Como vai escrever um livro de memórias?’. E ele ria, balançando a cabeça e concordando”!
Se essa historinha dá conta do humor e dos projetos incompletos desse grande escritor, a próxima dá uma pista sobre as inclinacoes políticas dele. Larissa diz: “eu saía do colégio e ia para a casa dos meus avós, onde passávamos tardes deliciosas. Eu levava meu violão porque sabia que adoravam as músicas que eu tocava e cantava pra eles”. No repertório, as preferidas de vô Permínio: Gente humilde (música de Garoto e letra de Vinicius de Moraes e Chico Buarque), Isto aqui, o que é? (Ary Barroso) e Valsa de uma cidade (Ismael Netto e Antônio Maria).
Não surpreende que Gente humilde seja uma das favoritas do velho Asfora. A letra, que começa com
Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
ecoa com a resposta que Permínio deu a Pedro Bial, na última entrevista concedida pelo escritor. Quando perguntado “o que a literatura lhe deu de mais precioso?”, Permínio responde: “o amor pelo pelo povo”:
Já escrevi sobre isso mil vezes: essa dedicação ao povo é algo que aprendi com vovô, é uma das maiores riquezas que possuo e a melhor ferramente que tenho para sobreviver nesse mundo. Por isso esses dias quase caí pra trás lendo a nius da maravilhosa
. O texto mais recente da autora haitiana nascida nos EUA, também trata de seus avós (especialmente do avô dela) e me pegou de jeito, sobretudo esse trecho:Sei que não sou como meus avós. […] O que eles viram em mim foi uma jovem que adorava ler, e não precisavam de mais nada para se orgulhar de mim. A presença deles era um tributo à minha existência, e a ausência deles é um silêncio na minha alma. Para aqueles de nós que nunca herdarão dinheiro, terra ou imóveis, as pessoas que nos moldam são a nossa riqueza. Os anos passarão, mas enquanto eu estiver viva, valorizarei os portadores desse amor incondicional [que recebi].
Esse post, mais emocionado que informativo, é porque julho marca o mês de nascimento desses dois avôs: hoje, dia 12, é o aniversário de Permínio Asfora, nascido em 1913; e em 20 de julho é o de vovô Raimundo, que nasceu em 1916.
Para celebrar a vida dos avôs Permínio e Raimundo, compartilho com vocês a criação do verbete “Permínio Asfora”, no Wikipedia, com o qual tento mitigar um tantinho do injusto apagamento do Permínio do cânone literário brasileiro. O verbete é sobre o avô Permínio, mas sem o avô Raimundo esse verbete e esse projeto não existiriam <3
Além disso, e não menos importante, esse gesto é feito em solidariedade ao povo Palestino e sua luta por emancipação. Permínio foi o primeiro escritor brasileiro de origem Palestina a publicar um livro do Brasil e o primeiro a escrever um livro tendo um Palestino como protagonista. Só isso deveria ser motivo para que ele voltasse a ser celebrado, pesquisado, republicado e, mais importante de tudo, lido. #palestinalivre!
ps: tive muita dificuldade em navegar as licenças de uso de foto no wiki, então se tiver por aqui algum leitor mais safo no uso do wikipedia, que tenha disponibilidade de me ajudar a subir as fotos, manda mensagem? deuslipague!
Adelaide querida, que homenagem linda aos nossos avôs! Somos só gratidão a você por estar resgatando a obra do nosso Permínio, que certamente merece manter-se cada vez mais viva! Obrigada por tanto!
Ler esse pequeno trecho de "nossas" histórias, me traz alegria e a certeza de uma época, que penso, fomos muito privilegiadas querida...
Onde vou esse amor me habita por inteiro!!!
Grata mais uma vez por trazer estas memórias 🌹🍃❣️