Abril de 2023: “fazer uma casa é uma eternidade sem nome”
uma carta para a rua Elsen, número 41, onde vivi por eternos nove anos
Querida casa,
me despeço. Em pouco dias te deixo, a ti, meu endereço mais longo, onde eu passei mais tempo, onde enfim tive tempo de olhar, desajeitados, mas cicatrizando, os ferimentos (foi sem querer essa rima).
Agora mesmo me vejo dividida, entre dois sentimentos que não fazem as pazes: não querer me apegar a nada, e a vontade de ficar. Ou: saber que todo apego é ruim, e a consciência de que morar com dignidade é um direito. É que você, casa querida, onde cheguei em 2014, virou o último refúgio numa cidade que aprendi, com o tempo, que não me quer, não quer outros como eu. Na pandemia, você foi como um útero, mesmo: não poder sair de casa me liberava de, todos os dias, ser confrontada com o racismo e a xenofobia. Assim, podia ficar dentro de você, protegida de dois vírus: o corona e o preconceito.
Em Lisboa, semanas atrás, com outros companheiros de luta pela moradia, ouvi alguém dizer: lutamos não somente pelo direito de ter um teto sobre a cabeça, mas pelo direito de sentir conexão com o lugar onde vivemos. Achei muito lindo, porque, de fato, morar é emoção. Não é somente a construção, a estrutura física: é a ideia de morar, é o que a gente sente naquela casa e naquela vizinhança. Aqui, pude escrever meu primeiro e meu último livro. Dentro da sua barriga, casa querida, eu pude endoidar, ir pro fundo do poço criativo, e sair de novo – com uma caixa de polaroides e nudes, com um chifre, com um martelo.
Aqui, nisso que chamam de “bairro”, eu conheço e me relaciono não somente com meus vizinhos, com as trabalhadoras do mercado, da tabacaria, os motoristas do ônibus, os moradores de rua, os carteiros; aqui eu conheço de cor não somente o horário de funcionamento das lojas e da biblioteca do bairro: eu conheço o corvo que esconde amendoim no meio dos meus morangos, Reginaldo; eu sou amiga dos pardais que vêm beber água no pratinho que deixo no banquinho da varanda; nesse mesmo pratinho as vespas, de quem mantenho segura distância mas que são muito benvindas, vêm matar sua sede; eu conheço a família de esquilos que mora nos fundos do prédio, conheço a rixa deles com os corvos; conheço os pega-rabuda, os pombos, os ratos, a raposa solitária; as abelhas, rainhas do meu verão, vêm na minha varanda por causa das flores de trevo, outro ponto alto ali de junho. Atrás do prédio tem uma cerejeira que bota flores brancas e rosa, a mesma árvore, com flores diferentes: somos mais que amigas: eu a reverencio toda vez que passo por ela, ela é mesmo majestosa. O ginkgo do parque, que foi plantado alguns anos atrás, agora um adolescente, eu vi crescer, me sinto sua tia. Perto dele: as urtigas todas, as rosas-batata, os dentes-de-leão, a fila de cerejeiras plantadas logo após a queda do muro, um presente do governo do Japão; no fim da rua, cruzando a última ponte antes da fronteira com o outro bairro, há um pequeno monumento na frente do último endereço de Olga Benario em Berlim, antes dela ir pro Brasil – nossa aproximação ideológica e geográfica me faz mesmo sentir que sou sua vizinha, apesar da fenda no tempo-espaço.
No prédio, sou amiga de Maria, a vizinha de cima, que no chifre chamei de Eva. E dentro de casa, há toda uma fauna de bichos e fantasmas: Andy, que no mesmo poema virou Fred, que ainda mora aqui comigo, depois de morrer velhinho dentre deste apartamento, onde ele construiu a beliche enorme, de madeira maciça, onde eu dormi tantas noites preocupada com um despejo e de onde acabei sendo expulsa de fato; Darth Vader, a aranha preta e bunduda que mora na janela da cozinha, me ajuda no controle da população de mosquinhas de frutas. E a luz que bate aqui, que se movimenta no decorrer do ano, fazendo sombras diferentes, é uma entidade em si própria.
Tudo isso dá sentido à minha vida cotidiana, que é, afinal, a única vida que tenho.
Não é o fim do mundo mas, sem mim, os pardais terão um pratinho a menos de água para beber e, já que vou levar meus morangos comigo, onde Reginaldo vai esconder seu amendoim? Certamente pássaros e insetos vão se virar muito bem sem esta inquilina que vos escreve – mas mesmo assim, minha ausência brusca significa sair em busca de uma nova fonte de água fresca em meio a verões cada vez mais secos, quando não somente água para animais escasseia, mas também quando secam e somem os arbustinhos onde os bichos podem manter seus ninhos e esconder seus estoques de comida e onde as abelhas podem vir fazer uns lanchos.
Escrevo isso não para dar importância a mim mesma, mas para dizer uma coisa que devia ser óbvia e não é: todo bairro é um ecossistema. Não é somente um lugar onde a gente mora, onde há ruas com nomes e casas com números, não é só um lugar onde passam ônibus e bicicletas, não é só um lugar aleatório onde há estabelecimentos comerciais, residenciais, escolares. Um bairro é um ecossistema de seres vivos interdependentes. Assim, e por causa dessa relação predatória que é a relação inquilino e senhorio, cada despejo não é somente um problema para quem é expulso: é um problema ambiental.
Nesses ecossistemas que viemos, com o tempo, a chamar de bairro, cada vizinho, cada morador, cada bicho, cada planta, pega para si uma tarefa, concreta ou simbólica, consciente ou inconsciente, que mantêm essas vizinhanças, esses territórios, funcionando, mesmo quando disfuncionais. Um despejo é a degradação de ecossistemas que, mesmo nas mais precárias das situações de infraestrutura, existem por causa de todas as coisas que lá vivem. Não estou aqui romantizando nada – os escritos de Carolina Maria de Jesus nos ensinam que esses ecossistemas também podem ser fonte de muita dor. Mas não podemos considerar que, dentro das condições materiais que as pessoas já vivem, sempre existem coisas que podem ser melhoradas agora, sem que as pessoas tenham que ser deslocadas.
É preciso deixar bem claro: os responsáveis pela destruição desses ecossistemas não são agentes imateriais, “a mão invisível do mercado”, coisas que parecem tão imanentes que não daria pra mudar. Os responsáveis são os empresários do aluguel, os donos de imóveis – todo aluguel é extorsão – e governantes como o fedelho João Campos, que fazem das nossas cidades os seu balcão de negócios, a custa das pessoas comuns, como eu e você, que trabalham e só querem estar de boa onde moram. Essa relação precisa acabar, porque não somente morar é um direito, como também é um direito viver uma vida que faça sentido, sem a chantagem emocional e econômica existente na relação entre alguém que é dono de uma casa, e alguém que não é.
Um pouco antes de morrer, o avô materno de José Saramago, pressentindo que sua hora se aproximava, foi “de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas”. Chorei tanto quando li isso, achei tão bonito. Me despeço dessa casa, desse bairro, portanto, dizendo a tudo que me cerca que não vou embora porque quero. Vou porque é assim no capitalismo: o senhorio manda e desmanda: o inquilino faz as malas: sofrendo mais ou sofrendo menos, mas sofrendo, toda vez. Como diria o grande, enorme poeta cearense Patativa do Assaré (aqui ele vocaliza este poema):
o brasil de baixo, coitado
se vê das casas despejado.
homem menino e mulher
sem achar onde morar
porque não pode pagar
o dinheiro do alugué.
É por isso que eu sou militante pelo direito à moradia: é que quem briga sozinho perde sozinho. Luto para que, um dia, possa ganhar, ao lado de todos os seres viventes com os quais compartilho esse grande ecossistema que chamamos de “nossa cidade”, nossa vida de volta. Porque, como escreveu Jorge de Sena (também autor do título deste post) num poema maravilhoso chamado Glória: “Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer”.
Esse texto é dedicado às mulheres lutando contra o despejo na Zeis Vila Esperança, em Recife, e às comadres no PCB Pernambuco, no MTST Pernambuco e no GT Right to the City.
Que carta linda, Adelaide. Fiquei comovido, talvez porque eu viva me mudando. Agora mesmo tô em busca de uma casa com quintal para alugar, porque tenho três cachorros. Bons ares e bons dias na tua nova residência.
força na tua nova jornada, Adelaide!
ah, e tua news sobre memória mudou alguns rumos meus (e espero que das pessoas ao meu redor). obrigado 💐