Fogo Verde
Sobre os impactos ambientais e sociais da mineração, o terceiro livro de Permínio Asfora saiu em 1951, mas parece que foi escrito hoje!
A nius de hoje foi escrita por Rozélia Bezerra, professora aposentada de história e minha linda momõe, e editada por moá <3 Boa leitura!
Mote
Tal como em Noite Grande (1947), Fogo Verde (1951) se localiza entre o Piauí e o Ceará, e teve como objeto essencial a corrida pela exploração de minerais, no Nordeste do Brasil, e seus efeitos sobre seu povo e natureza.





Eixos
Permínio Asfora organizou o enredo em três capítulos. O primeiro, “A fuga de Marta”, usa o drama familiar do coronel Luís Romão para tratar de questões de importância coletiva. Aqui, Permínio aplica o mesmo método de Sapé e Noite grande, que é: partindo de uma história aparentemente insignificativa (nesse caso, uma espécie de Romeu e Julieta dos sertões), ele tenta sensibilizar o leitor sobre temas sociais da maior relevância. No caso, são problematizados privilégios e preconceitos de classe, racismo e violência de gênero.
Luís Romão é o latifundiário rico, que orgulhosamente se apresenta como um dos remanescentes dos primeiros colonizadores portugueses no Nordeste — que se embrenharam pelos sertões e estabeleceram, na maioria das vezes de forma totalmente ilegal, suas fazendas de gado.
Este coronel “louro de olhos azuis” (p.13) deixa explícito seu orgulho de vir da família pernambucana “Cavalcanti”, por parte do avô: “Sabe o que é ser um Cavalcanti? É um homem deitado numa rede sem precisar trabalhar, homem grande, senhor de engenho” (p.24). Por parte da avó, ele vem da família “Melo” – o que, segundo ele, teria lhe dado o direito de ser “senhor de engenho em terras adiantadas de Pernambuco”, se seus antepassados não tivessem vindo para o que ele chama de “uma terra atrasada”, o Piauí.
O orgulho de sua hereditariedade foi posto à prova ao descobrir que sua filha Marta namorava com Miguel, caixeiro viajante pobre e, para o coronel Romão, alguém sem pedigree. Isso porque, para ele, “Gente é que nem cavalo, se escolhe pela raça” (p.24). Tomado de ira, Luís Romão expulsa a filha de casa — e o destino de Miguel, como se vê no fim do livro, também é trágico.
O segundo capítulo tem o mesmo nome do romance. Logo na primeira página deste, ocorre o anúncio da possibilidade de haver minérios nas terras de Salustiano, proprietário da vendinha local que vendia de um tudo, o famoso secos e molhados. A notícia é trazida por Valério, vaqueiro de Salustiano, que exclama: “Tudo é ouro meu amo. Tudo é ouro. (p.64).
Salustiano recolhe amostras das pedras e viaja para Fortaleza, tentando encontrar alguém que seja capaz de fazer uma análise para identificar o tipo de mineral. Os resultados chegam da Alemanha, dos EUA e da Inglaterra e atestam que o mineral encontrado é cobre, com pureza de 90%.
É a partir daí que Permínio desenvolve a trama central: a disputa, entre os moradores do povoado, por terra para mineração, e as desgraças que dela decorrem. Os meios de conseguir mais terras são conhecidos por qualquer pessoa familiarizada com as questões agrárias no Brasil: suborno de tabeliães e escrivães de cartórios, venda e emissão de escrituras ilegais, grilagem etc. Sobre isso, o personagem Antônio Ribeiro diz: “Valentim quer que tudo seja de todos. Salu quer só para ele... O grande, como o senhor sabe, é fácil de engolir o pequeno” (p.167).
O terceiro capítulo foi intitulado “E as pedras não acenderam mais”. Nele, Salustiano viaja para os EUA, onde quer obter um contrato de exploração com as empresas mineradoras. Na gringolândia, depois de inúmeros contratempos e intimidações, Salustiano acaba assinando um contrato draconiano: além de outros absurdos, prevê a isenção de qualquer indenização, caso houvesse guerra. E esta foi desencadeada exatamente após o retorno de Salustiano ao Brasil:
— A coisa vai pegar fogo, seu Salustiano — disse-lhe mostrando o jornal.
Salu logo viu as manchetes falando no assassinato do arquiduque da Áustria.
— Pode ser que não venha a guerra – respondeu Salu.
— Isto já é a guerra.
É só aí que ficamos sabendo o tempo exato no qual se passa todo o romance (início do século 20, primeira guerra mundial) – o que mais uma vez comprova a atemporalidade do tema e a maestria de Permínio.
O episódio é de grande importância para o desfecho do enredo. De fato, é a sua culminância. Isso porque o contrato estabelecia que “Em caso de declaração de guerra entre países do continente americano ou mesmo europeu, este contrato ficará sem qualquer efeito” (p.248). Ou seja: o protagonista, além de perder todo o investimento financeiro que fizera, perdeu as terras para a companhia estrangeira.
O ápice do enredo foi construído de modo a ampliar a trama, que prende diferentes personagens à exploração do minério — as famílias de Luís Romão e de Salustiano, além dos representantes do mercado financeiro e de exploração de minerais — e as consequências da derrocada do negócio para as pessoas do povoado.
Minha experiência com a leitura de Fogo Verde
Por falar sobre mineração, o romance me fez voltar aos meus tempos de aluna do curso ginasial, lá pela década de 1970. Curiosamente, a escola municipal em que estudei, em Caruaru, levava o nome do imortal que esculhambara Fogo Verde de 1952: era o Colégio Álvaro Lins (que, aliás, ainda existe!). Nessa época, estávamos em plena ditadura militar, e éramos apresentados à história da colonização do Brasil não como aquilo que ela foi (uma invasão), mas sim como uma “descoberta”. Figuras como os genocidas Raposo Tavares, Domingos Jorge Velho e Borba Gato, todos ligados à mineração, nos eram apresentados como heróis civilizadores. A outra parte da história — os efeitos da mineração e do bandeirantismo sobre pessoas e biomas; mas também a resistência popular contra os eles! — era completamente ignorada.
O livro reavivou, também, minhas memórias de pesquisas de doutoramento, entre os anos 2006 e 2010 (eu só conseguir sair para fazer doutorado aos 55 anos, mas isso é outra história, talvez Adelaide conte um dia). Na época, eu estudava a escolarização brasileira e a fundação, em 1800, do Seminário de Olinda — cuja proposta de ensino previa catalogar os assim-chamados “recursos naturais” da região e o envio de relatórios sobre tais recursos, para a coroa portuguesa. Provendo um inventário das nossas riquezas, o instituto de ensino se colocava à serviço da pilhagem do Brasil no projeto colonial.
A partir de Fogo Verde, é possível ver como os horríveis desastres em Mariana, Brumadinho, o afundamento do solo de Maceió pela Braskem e a destruição da Chapada Diamantina pela Brazil Iron (isso só para citar uns poucos exemplos) estão conectados — e têm como raiz as diversas etapas da colonização do Brasil pela Europa, que ainda não terminou, só mudou de cara.
Como não podia deixar de ser, na Palestina ocorre fenômeno colonial semelhante. Segundo dados de 2010 da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU, “a principal atividade de mineração na Palestina é em pedreiras, um dos recursos naturais mais importantes do país. No entanto, como todos os outros setores de desenvolvimento, as políticas e práticas da ocupação israelense impediram os Palestinos de desenvolver a indústria de mineração na Palestina” — enquanto assistem a potência ocupante explorar e se beneficiar das pedreiras ilegais. Ainda de acordo com a ONU, mas também a Human Rights Watch, Israel não somente explora as pedreiras nos territórios ocupados, como proíbe os Palestinos de fazê-lo, descumprindo, entre outros, o Tratado de Oslo.
Por isso tudo, e como todos os outros livros de Permínio, Fogo Verde segue extremamente atual — talvez até mais atual do que nunca, conforme vemos as notícias sobre mineradoras atuando no Piauí.
Pitaco #1 da filha da autora: as multinacionais que molestam os biomas e os povos do Nordeste brasileiro (e mundo afora) não se limitam à mineração. Um bom exemplo disso são as empresas de energia eólica. Se a ideia fosse boa, as famílias agricultoras e indígenas não estariam se mobilizando contra ela com tanta veemência — e obtendo importantes vitórias, conforme vimos essa semana em Pernambuco! Tenho certeza que Permínio, se estivesse vivo, seria um crítico ferrenho da forma como a assim-chamada “transição energética” está sendo imposta no Nordeste. Recomendo demais o documentário Vento Agreste, dirigido por João do Vale, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra!
Recepção
Isto tudo me leva a crer que, se Álvaro Lins tivesse lido um pouco mais sobre mineração, não teria dito, na sua resenha para o Diário de Pernambuco, que Permínio Asfora sofria de “insuficiência cultural”.
Pitaco #2 da filha da autora: talvez a rixa de Álvaro com Permínio seja pessoal. No prefácio de Fogo Verde, escrito pelo próprio Permínio, após uma defesa da paz e da humanidade, ele denuncia os literatos que “a cada dia se confundem com esse grupo de salteadores da paz”. E ao contrário de Permínio, que foi progressista do começo ao fim da sua vida, Álvaro Lins era escorregadio nas suas convicções políticas — foi de apoiador de Getúlio Vargas em 1930, a integralista em 1932, a PSD-ista em 1936... até virar isentão! Talvez por isso ele tenha ficado injuriado com Fogo Verde já a partir do prefácio. Mas deixemos esse recalcado de lado.
Nelson Werneck Sodré escreveu longa e bonita resenha sobre Fogo Verde para o jornal Correio Paulistano (1953). Depois de elogiar os camaradas Gracialiano Ramos e Jorge Amado, e apontar a necessidade de um romance que esteja amparado na vida real dos brasileiros, Sodré declara que Fogo Verde se insere no rol de romances que “anunciam novos rumos para a ficção brasileira”, com personagens nas quais Permínio conseguiu “infundir o sopro da vida”.
Gilberto Freyre, fã de Permínio, também escreveu positivamente sobre o livro. E para o Diário de Pernanbuco de 12 de julho de 1953, José Augusto Guerra escreveu uma resenha em que esculhamba todos os dois livros anteriores, mas celebra Fogo Verde, dizendo que foi com este livro que Permínio Asfora foi “de aprendiz a artesão”.
Os dois exemplares aos quais tive acesso foram numerados pela editora. A primeira delas, de número 238, faz referência à importância de Permínio como um dos autores “que se impõem ao público brasileiro”, e de Fogo Verde como romance que “pertence mais à categoria de obras de história que à de ficção”. E por que isto? Porque “fixa aspectos de lutas de que provém nossa ainda incipiente e dependente economia nacional”.
Os problemas apresentados em Fogo Verde, no entanto, não são os “dramas novos típicos do nordestino”, que Walter Sampaio disse esperar ver no livro, na sua resenha para a revista Fundamentos — são problemas causados no mundo todo, apenas com diferentes roupagens, pelo capitalismo. Afinal, como diz a música, “miséria é miséria, em qualquer parte”.
UAU! parabéns pelo texto, só imagino o trabalho que tenha dado. ficou impecável!