gurmetizaram o rio e também a praia
uma tradução de Lo que le pasó a Hawaii, de Bad Bunny, para o recifês
Entre 1990 e 1991, por um curto período, mamãe e eu saímos da casa de vovó e fomos morar no bairro da Iputinga, zona oeste de Recife. Era a primeira vez, desde que eu tinha nascido, que eu morava só com minha mãe e, apesar de sentir saudade de vovó, era também um alívio. Na casa de Dona Adelaide, eu e mamãe compartilhávamos um quarto, que também virava quarto das visitas toda vez que algum dos 16 filhos de vovó (e suas famílias) vinham visitá-la. Quando algum filho ou filha estava se divorciando era também lá que pousavam, e era no nosso quarto que vovó enfiava todo mundo que vinha, fosse a visita longa ou curta.
A casa de vovó era, bendizê, a casa de todos os seus filhos, sobretudo a casa dos seus filhos homens (e suas esposas), que davam pitaco na minha vida e na de mamãe, nas nossas coisas, nossas roupas, no nosso vocabulário, em tudo — afinal, mãe-solteira e sua filha são terra de ninguém. Sinceramente, era um inferno. Essa breve estadia na Iputinga me deu pela primeira vez o gostinho do que era autonomia habitacional, a paz mental que ela traz — e sua importância. A rua não tinha calçamento (ainda não tem), a coleta de lixo era irregular, as ruas eram escuras, faltava água, a escola era ruim, e mesmo assim foi bom.
Tão ou até mais importante: a mudança, ainda que temporária, me mostrou a margem direita do rio, um pedaço da periferia recifense que eu desconhecia até então, não por ser boyzinha de Boa Viagem (entendedores entenderão) mas por ser cria do centro. Tendo passado a melhor (e mais importante!) parte da minha infância num predinho caixão perto da Praça Chora Menino, o centro de Recife era não somente o centro geográfico, mas era sobretudo o centro emocional da minha vidinha. Pra mim, então com 8-9 anos de idade, Recife era só aquilo mesmo: o lado esquerdo do Capibaribe. “Recife” era o Bairro do Recife, de Santo Amaro, da Boa Vista e as pontes que os ligam; era a rua Velha, a Manuel Borba, os cinemas de rua, o Teatro do Parque, os sinos do Salesiano, a Frisabor, o Mercado de São José; era as vizinhas-amigas de vovó (dona Consuelo, “tia” Juracy, “tia” Lindalva), as novenas delas e as visitas de padre Amaurílio; era Coleguinha e a família dela, que eu amava; era seu Panayotis, o chaveiro do bairro, que era grego, sempre me cumprimentava com aperto de mão firme e respeitoso, como se eu fosse adulta e que, creio eu, tinha um crush em vovó; era a escolinha e minha primeira professora, Maria José; era a Igreja Nossa Senhora das Fronteiras, nos fundos da qual morava nosso ilustríssimo e querido vizinho, Dom Helder Câmara; Abraão e Joel (que vocês conhecem como os Irmãos Evento, mas que pra mim eram meus amigos!) e a mãe deles, minha amada “tia” Dora. Parecia que o centro do Recife era o centro do planeta.
Sair do centro, portanto, não foi uma delícia, não preciso mentir. Não é fácil morar fora dos bairros centrais — a infraestrutura era e é pouca e ruim e, se a mobilidade pública em Recife deixa a desejar em 2025, imagina 30 anos atrás. Mesmo assim, pra mamãe, que nunca teve um carro, era uma conveniência — na época o trabalho dela era na Caxangá, então morar na Iputinga encurtava enormemente o trajeto que ela teria que fazer, de ônibus, pra ir e voltar do trabalho, com uma filha em idade escolar da qual ela cuidava sozinha e sem receber pensão.
Nos finais de semana, íamos para o parque Santana — que, apesar de estar na margem esquerda do rio, era acessível a pé, cruzando o pontilhão da Misericórdia e passando pelo que se tornaria ZEIS Vila Esperança (esta, aliás, destruída pelo atual prefeito, esse sim, boyzinho de Boa Viagem, João Campos). Vale dizer que, nessa época, o entorno do parque ainda não era gentrificado, como é hoje.


Foi só quando nos mudamos para a Iputinga que eu descobri que o parque Santana existia. Aliás, foi só quando nos mudamos pra Iputinga que descobri o conceito de parque como lugar de fruição coletiva. Até então, a ideia de sair de casa pra zanzar num parque não fazia parte do nosso mundo mental, muito menos de nosso cotidiano — quando muito, íamos pra praia com alguma tia, e mesmo isso raramente acontecia. Se, tendo crescido no centro de Recife, eu fui apresentada ao conceito de “cidade” desde pequena, foi só na Iputinga, na convivência com os vizinhos e nas caminhadas para o parque de Santana, que eu tive a dimensão da vidinha de bairro suburbano.


Essas experiências com minha cidade fazem de mim quem eu sou — elas me dão o entendimento de um Recife total e, por conseguinte, me fazem sentir uma recifense total. É esse sentimento de pertença a Recife, na sua totalidade, que me causa o mesmo nível de revolta quando vejo o seu centro ser gourmetizado (para o lucro e desfrute de poucos), e os seus subúrbios serem destruídos, com suas populações despejadas, para depois serem gentrificados — novamente, para lucro e desfrute de poucos. Isso sem contar na violência estatal nas periferias, que merece um texto à parte…
Foi pensando nesse “recifismo” radical que traduzi Lo que le pasó a Hawaii, de Bad Bunny. Na letra original, Benito compara o processo de anexação do Havaí pelos EUA, com o processo de neocolonização de Porto Rico pelo país de Trump. Guardadas as devidas proporções, fiquei pensando como o capital imobiliário, e os governos a seu serviço, colonizam cidades e territórios, a seu bel prazer.
João Campos faz jus a essa tradição desgraçada. Em julho de 2024, ele privatizou a gestão de quatro parques públicos — dentre eles, o parque Santana — com um contrato válido por longos 30 anos. Sabemos muito bem que a prioridade do capital não é suprir necessidades humanas e sim as suas próprias, e esse processo já começou: a empresa que assumiu as gestões anunciou a demolição da pista pública de bicicross do parque da Jaqueira, para construção de um restaurante particular. Sem consulta pública, afinal a gestão do local, agora, é privada. Essa é apenas a primeira de muitas medidas antipopulares a serem tomadas nesses parques. Sem organização popular contra esse tipo de privatização, e sem uma esquerda que tenha coragem de bater de frente com a LOROTA tecnocrata do PSB e da família Campos, é apenas uma questão de tempo até que os interesses das empresas destruam o tecido social que nasce dentro e ao redor de espaços públicos — tecido esse que é, afinal de contas, a coisa mesma que faz a vida valer a pena.
O que se fez noutras capitais
uma tradução de Lo que le pasó a Hawaii, de Bad Bunny, por Adelaide Ivánova
[Intro]
Isso foi um sonho que eu tive
[Verso 1]
Ela é mesmo muito linda, até quando está mal
Nos seu rosto o sorriso esconde que quer chorar
O vai-vem de suas ondas faz um barulhinho bom
São band-aid pras feridas, fazem a tristeza passar
São band-aid pras feridas e há muito o que curar
No Alto 13 de Maio ainda dá pra respirar
As nuvens estão mais perto e com Deus dá pra falar
Recifense tá chorando, mais um amigo que emigrou
Não queria ir pra São Paulo mas o desemprego obrigou
E eu não sei mais até quando…
[Refrão 1]
Gurmetizaram o rio e também a praia
Despejos de velhinhas, de tua vó tiraram a casa
Não não matem o Beberibe nem esqueçam dos manguezais
Que não se faça em Recife o que se fez com outras capitais
[Interlúdio]
Tem cuidado, Manu, tem cuidado
[Verso 2]
Ninguém vai porque quis ir-se, quem se foi sonha em voltar
Se um dia eu for embora muito eu irei chorar
Outra recifense lutando, uma que não se curvou
Não queria ir pra São Paulo e na Manguetown ficou
Mas não sabe até quando...
[Refrão 2]
Recuperaram o rio, mas só lá nas Graças
despejos lá na praia, Jaqueira privatizada
Não não matem o Beberibe nem esqueçam dos manguezais
Que não se faça em Recife o que se fez com outras capitais
ainda (ainda!) não conheço Recife, mas sou mt familiarizado por essa gentrificação a qual vc e o gostoso do Benito se referem. esse veneno da especulação imobiliária escorre por todas as veias do noss Brasilsão, a ponto de ser sentido aqui no interior de MG. enquanto as praças e antigos casarões morrem pra dar lugar a caixas cinzas de concreto e vidro, a galera não consegue mais comprar sua casinha e tem que migrar pra periferias cada vez mais distante do centro urbano. e assim como o avatar moderninho do prefeito daí, a prefeitura daqui tb abre os caminhos e venda os olhos (enquanto uns lucram mt)
Te amo, amiga❣️