Janeiro de 2024: guia da mochileira perua
esse foi o título de um post legendário do finado vodcabarata, que tive que apagar
Se minha memória não me falha, o post foi publicado no comecinho de 2008, e nele eu contava meus truques de beleza quando eu ia mochilar. Na época, eu estava morando em São Paulo, e tinha acabado de voltar de uma viagem ônibus saindo da capital paulista, com uma parada de uma semana em Trancoso, de onde segui de lotação até o norte de Alagoas, onde passei o ano novo de 2007 pra 2008.
No post, eu contava dos produtos de beleza que eu levava numa mochila que pesava uns 15 kg (metade dos quais eram produtos de beleza kkk porque meu cabelo é super cacheado e na época era comprido, precisava de muita bajulação!) e dos truques de como ficar arrumadinha mesmo durante uma viagem aventureira, com longos trajetos comendo poeira em kombis e em hospedagens baratinhas. O post foi um sucesso, inclusive aprovado por uma das minhas amigas mais próximas na época, Vic Ceridono (nós trabalhávamos juntas num site de moda véio).
Antes dos 25 anos eu consegui conhecer quase todas as capitais dos estados costeiros, do Maranhão a Santa Catarina (menos o Espírito Santo, mas vai rolar), viajando sempre por terra e sempre sozinha:
Uma exceção foi o Maranhão Magia, para onde fui de avião em 2009 ou 2010, com colegas de trabalho.
A outra exceção foi em 2001, quando fomos pro Rock in Rio: não lembro mais os pormenores, mas sei que éramos um bocado de adolescentes saindo de Recife pro Rio Janeiro de ônibus e foi muito maravilhoso!
Amanhã eu começo a viajar de novo e um bocado de fatores me leva a fazer minha primeira mochilagem sozinha, em 15 anos:
1) o inverno alemão tem sido mais do que uma estação do ano: desde o sete de outubro, o racismo e a islamofobia tomaram proporções difíceis de aguentar, e ficar aqui está difícil (ainda mais depois que vazou a informação de que o partido neonazi está se organizando fortemente para deportação em massa, quando atinja maioria parlamentar);
2) o boicote e a perseguição a artistas, ativistas e intelectuais solidários à palestina, que começou afetando apenas os nomes mais “famosos”, finalmente começou a respingar nos pequenos e chegou até mim, o que significa (além de uma redução do meu sustento) a diminuição na minha qualidade de vida e por isso minha vontade de sair um pouco dessa merd4,
3) a “ameaça” (ou vontade capitalista) de uma guerra maior faz com que eu queira ver a Europa pela última vez antes de ela se acabar (ou antes de eu ir embora dessa bost4);
4) e ainda por cima tem a crise da meia idade kkk e o fato de que comecei minha vida aqui numa mochilagem também, só que 15 anos atrás, que também foi feita de ônibus, e quero celebrar essa efeméride um pouquinho, porque essa primeira viagem aconteceu com o desejo de renascer #irmãdulce: em 2009 eu estava tentando juntar os caquinhos, depois do que fizeram comigo durante um processo judicial. Aliás, toda essa viagem está registrada (e ainda disponível) no vodcabarata, nos meses de julho a setembro de 2009 (peço perdão de antemão caso vocês encontrem alguma coisa politicamente incorreta/desatualizada, tá? Tenham piedade porque em 2009 a linguagem era outra, e aceitarei os feedbacks e críticas construtivas #marxista).
(E tem ainda um motivo #5 mas falo dele mais pra frente).
Então começo amanhã. Vou até Marselha de avião (infelizmente, porque tenho pavor e porque não é exatamente a coisa mais ecológica a se fazer, mas não achei passagem de trem pagável), e de lá sigo por Girona-Madrid-Lisboa-Porto-Paris-Bruxelas, e de Bruxelas volto pra Berlim – 4700km em 25 dias de viagem, tudo por terra. Na primeira mochilagem, eu tinha 26 anos, estava sozinha e apavorada, agora eu tenho 41 anos, nada mudou kkk mas me sinto um pouco mais equipada para fazer qualquer coisa, se bem que as costas vão reclamar de ficar tanto tempo sentada em busão he.
Mas nem tudo é engraçadinho: essa viagemcomeça na ressaca do brutal assassinato da companheira Julieta Hernandez, que decidiu (ousou?) viajar a América Latina de bicicleta e terminou sendo roubada, 3stupr4da, imolada e enterrada viva. É impossível viajar agora sem pensar nela, sem pensar em todas as mulheres punidas por desejarem usar do seu direito de ir e vir. Essa viagem começa também sob o impacto da notícia de que uma menina de 12 anos foi forçada por um motorista de app a tirar a roupa e deixá-lo fotografar os genitais dela.
Apesar da enorme diferença de idade entre essas duas pessoas (Julieta tinha 38 anos), existem diversas semelhanças entre esses casos, e duas delas me comovem em particular. Uma é o fato de elas terem sido vítima de violência enquanto tentavam apenas chegar a algum destino (contrariando a lógica, ainda tão naturalizada, que lugar de uma menina/mulher é em casa). A outra é a forma como as pessoas interpretam os crimes: “quem mandou ela andar sozinha?”. Ora, não devia ser muito mais chocante perceber que matamos mulheres e meninas pelo simples fato de elas estarem em movimento?
Repare: o “quem mandou ir sozinha?” sendo aplicado a mulheres de 38 ou meninas de 12 é ultra violento porque escancara a naturalização da vulnerabilidade das meninas, de um lado, e a clausura onde querem meter as adultas, de outro. Somos tratadas como estupráveis e incapazes do início até o fim da vida. O jogo é perverso, pois nos prende eternamente entre dois pólos: a “adultização” das meninas e a infantilização das adultas.
É nesse contexto que minha viagem acontece, e por causa do que foi feito com a viajante Julieta eu não tenho conseguido nem me animar muito, ainda que eu merecesse estar feliz. É que essa viagem era pra ser também:
5) uma celebração por ter concluído um livro demoradíssimo/dificílimo de escrever, ASMA, que sai em abril de 2024 pela Nós Editora. E a proximidade temática é que o livro trata justamente de uma história de uma personagem (uma mulher? uma vaca? uma ideia?) que perambula pela face da terra há uns 3 mil anos. A personagem principal é uma caminhante, que anda nem sempre (aliás, quase nunca) porque quer, mas porque no capitalismo é assim: primeiro ele nos força a emigrar, a nos locomover, para depois nos punir por termos nos locomovido. Quando decidi fazer essa mochilinha, as notícias de Julieta e a menina de 12 anos ainda não tinha acontecido. Mas outras milhares de meninas e mulheres já tinham sido punidas, antes delas, por terem tido que/querido sair de casa, seja lá por qual motivo for. Impossivel esquecer o caso de María Coni e Marina Menegazzo, que foram assassinadas no Equador enquanto mochilavam juntas. Nas redes sociais, os pitaqueiros diziam “quem mandou elas viajarem sozinhas?” sendo que, oras, elas não estavam sozinhas – estavam uma com a outra! #viajosola
A essa altura você deve estar pensando: “mana, mas não tem como comparar uma viagem de ônibus na Europa e uma de bike no Brasil”. Você tem toda razão. Sei disso sobretudo porque posso comparar a tensão que era viajar sozinha e por terra no Brasil, e viajar sozinha e por terra pela Europa. Mas é importante dizer que também em países ricos mulheres são punidas por caminhar solo: outro caso imperdoável é o de Rita Awour Ojunge, refugiada queniana que foi assassinada nos arredores de Berlim enquanto caminhava perto do campo de refugiados onde ela morava; Denise Thiem, morta enquanto peregrinava sozinha pelo Caminho de Santiago; ou da adolescente de 15 anos que foi assassinada num parque em Berlim, enquanto voltava sozinha e a pé pra casa.
Todo dia quando saio de casa, quando todas saímos de casa, fazemos três pactos imaginários ao mesmo tempo: confiamos que os homens que cruzam nosso caminho não vão nos assediar, assumimos um risco de que isso pode acontecer e desafiamos o patriarcado (e nosso próprio medo) com nossa simples presença nos espaços públicos. É uma carga MUITO pesada, sobretudo porque ela é constante e diária – e vale ressaltar que essa carga não recai igualmente sobre as mulheres, pois as pobres, imigrantes, trans ou racializadas sofrem muito mais. E os homens não fazem ideia do que é isso.
Agradeço a Deus de nada nunca ter acontecido comigo nessas viagens por terra, aqui ou lá, porque podia. O paradoxo aqui é que as violências de cunho misógino/sexista/sexual que aconteceram comigo nunca foram fora, mas sempre dentro de casa.
E com isso volto para o começo do meu texto: o post da mochileira perua. Quando decidi denunciar meu agressor, em 2008, a putaria do processo judicial foi tão grande que me vi obrigada a seguir a orientação do meu advogado (e de amigas juristas que conheciam bem as tendências misóginas da justiça) e apagar todos os posts do meu finado blog, o vodcabarata. Essas pessoas sabiam que aqueles textos poderiam ser usados contra mim pela defesa do estupr4dor. E o que tinha naqueles posts? Eu mesma te respondo: minha vida em Recife, fofocas das festinhas, histórias de meus boyzinhos, relatos de viagens, comentários sobre moda, maledicência contra celebridades. E um post sobre como mochilar sem perder o glam. Ou seja, nada que provasse que sou “estuprável” – até porque, ninguém é.
Aí eu fui lá e apaguei tudo. Se você for olhar os arquivos do blog, aparentemente ele começa em 2009, mas o vodcabarata começou em janeiro de 2005. Apaguei tudo entre 2005 e 2008 porque já bastava estar sendo punida por decidir denunciar a pessoa que me agrediu sexualmente – não queria que minhas próprias palavras, que eram testemunho de nada mais nada menos do que uma vida de uma menina em Recife, fossem usadas contra mim. Apaguei tudo porque já bastava estar sendo culpabilizada pelas pessoas ao meu redor por ter sido vítima de violência, e punida pelo sistema judicial por ter decidido denunciar o agressor. Essas instâncias repetiam pra mim quase a mesma coisa que agora dizem pra Julieta Hernandez: quem mandou ser o que é e fazer o que faz?
E é aí que essas violências se encontram: não estamos autorizadas a nos locomovermos, o que gera uma clausura (simbólica ou não) do nosso corpo, e não estarmos autorizadas a nos expressarmos, o que causa o encarceramento da nossa subjetividade e, em consequência, da nossa própria humanidade.
Em julho de 2023, visitando minha mãe em Caruaru, encontrei na casa dela um CD escrito “arquivos vodca”. Eu não sabia que esse backup existia. Ainda não tive coragem de abrir. Mas assim que tiver, essas palavras pré-2008 voltarão ao mundo, do mesmo jeito como eu volto a viajar, sozinha, amanhã, porque ainda não desisti de andar, nem de escrever, apesar de todos os esforços da macharada para nos paralisar na obediência e no silêncio. Eles que vão se lascar pra lá.
Você contando os casos de todas essas mulheres me fez lembrar da Ana Carolina, mulher lésbica assassinada aqui a pouco tempo. Liberaram um video de pouco tempo antes do assassino pegá-la, ela voltando de bicicleta do trabalho, depois de 10 horas numa loja de conveniência. Me deixou muito mexida e eu pensei exatamente na Julieta. O problema era que ela estava passeando, se desafiando, curtindo. E ana?
Enfim, boa viagem, deus te proteja hoje e sempre.
Como sempre vc me emociona. Te acompanho desde o início do Vodca e acho vc um exemplo de mulher. Que sua viagem seja incrível