Junho de 2023: bigode de foca, nariz de tamanduá
o parentesco que não teme dizer seu nome
Um dos meus melhores amigos sofreu muito com a morte de Liv Lagerblad, adoeceu mesmo. Falei pra ele, inocente: Leo, a CLT dá dois dias de luto, vai trabalhar não. E ele disse: querida, acorda.
É que a Consolidação das Leis do Trabalho não inclui morte de amigo e, assim, Leo não pode tirar essa licença. Conforme estabelece o artigo 473 da CLT, qualquer empregado nesse regime empregatício tem direito a dois dias consecutivos de afastamento, a partir da data do falecimento de um parente direto. O que é um parente direto? Cônjuge, bisavós, avós, pais, padrasto e madrasta, filhos, netos e bisnetos, pessoa que viviam como sua dependente financeira (mas só se declarados na carteira de trabalho) e irmãos.
Amigo não conta: a lei não estende a licença óbito aos casos de falecimento de amigos. Se o empregador quiser, poder até conceder a licença, mas a concessão do benefício (direito?) fica totalmente a critério da empresa. Um duplo absurdo, pois que a amizade é esse parentesco enorme, talvez o maior de todos, e é um vínculo que devia ser protegido e contemplado.
Em alemão, não existe uma palavra para namorado – o nome é Freund, que, literalmente, significa amigo. Se você fala “Fulano é um amigo” (ein Freund), você tá falando que ele é seu amigo, seu bróder. Se você fala “Fulano é meu amigo” (mein Freund), aí o sujeito é seu boyzinho, seu bombom, seu rolete de cana. Poderia aqui problematizar o pronome possessivo, e o conceito do amor romântico como posse, mas não tenho tempo (nem vontade kkk). Lukas é meu Freund – meu amigo e meu namorado. E Leo é um grande Freund – um amigo – e me partiu o coração ver como Leo, perante a letra da lei, não pôde tirar uma licença para se enlutar pela morte de uma grande Freundin sua.
Se Lukas ou Clarissa ou Raquel morressem hoje, e eu fosse CLT (mas ninguém mais é CLT), eu não ia ter dois dias de licença? Lukas não é meu parente, nem meu conje, a gente não vive em união estável: ele é meu namorado e ponto final. Preciso fazer todo um parrapapá de assinar papeis para que isso seja levado a sério? Clarissa e Raquel são minhas amigas, minhas companheiras de vida. É a falta de um contrato que faz com que uma amiga seja menos, ou tão pouco importante? Não dá para viver assim.
A pessoa fica logo recalcada, pensando: quem a CLT pensa que é? Ora, a CLT é importante e tem que ser protegida e melhorada e ampliada. Ninguém mais tem CLT mas, quem tem, devia ter o direito de luto na morte de alguém que ama, seja qual for o (tipo de) parentesco.
Num caso de suicídio, o direito devia ser ainda mais garantido, já que esse tipo de morte é traumatizante para toda a comunidade ao redor do morto. Suicídio é a 3ª causa de morte de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos, segundo a OMS, e precisa ser considerado como problema de saúde pública e de justiça social, já que as principais causas para morte por suicídio são complicações na saúde mental e desemprego. Não à toa é que autores das periferias do Sul Global, como Carolina Maria de Jesus, Jorge Amado e Graciliano Ramos (isso só para citar três) falam com relativa frequência do assunto.
Liv, uma poeta do Sul Global, usava a palavra que tinha para comunicar como podia – sendo que era maestra – a sua experiência de mundo:
Eu queria ter um corpo ínfimo
menor ainda do que é meu corpo mínimo
o suficiente para desaparecer das vistas e viver
em comunhão com os ácaros & barbeiros
para não ser possível captá-lo por nenhuma câmera
nem mesmo aquelas que filmam
a absorção do sangue por mosquitos
eu queria ter um corpo que não tivesse orifícios
que não pudesse ser penetrado de forma alguma
que não tivesse sangue
e não pudesse manchar os lençóis de absurdo
eu queria ter um corpo que se fizesse de espinhos por dentro
que rasgasse quem tentasse tomá-lo
Usar as palavras para falar das coisas como elas são é tão importante. Comecei a escrever esse texto dia 13 de junho, dia de Santo Antônio, que, em alguns lugares do Brasil, é Exu. Santo Antônio: o orador brilhante. Exu: o mensageiro. Aquele que, segundo Luiz Antônio Simas, é “capaz de estabelecer a comunicação entre o orum (o espaço invisível onde vivem os orixás e demais espiritualidades) e o ayê (o mundo material em que vivemos)”.
Estou em Caruaru, em meio as festividades de Santo Antônio, São João, São Pedro, em meio a um monte de cantador, repentista, poeta: cercada de palavra. Mas também cercada do silêncio imposto pelos tabus ao redor da morte, do sexo, da amizade. Nesse contexto, releio Liv com saudade e penso que a palavra é uma bênção: vamos usá-las com vontade, como leitores, autores ou tagarelas em geral.
Nas páginas 16 e 17 de A esquerda que não teme dizer seu nome, Vladimir Safatle diz: “a esquerda deve mostrar que é capaz de governar sem produzir novas modalidades de sofrimento (...). (...) ela deve ser, ao mesmo tempo, capaz de sentir o sofrimento social e capaz de ter a inteligência técnica para resolve-la no cotidiano”. Li isso e fiquei pensando que muito de uma mudança no artigo 473 da CLT passa pela necessidade de uma série de mudanças na sociedade: uma delas é a valorização de laços afetivos não-contratuais e não-sanguíneos, nos livrando do conceito de família como sendo a única forma de sociabilidade aceitável e respeitável, como se todas as outras relações fossem secundárias ou supérfluas.
Essas mudanças passam, também e inegavelmente, pelo exercício do uso da palavra – que nos emancipem de eufemismos desnecessários. Para que chamar de “passagem” o que podemos chamar de morte?, por que chamar de “última morada” o que podemos chamar túmulo?, por que chamar de “companheiro” o que podemos chamar de namorado?, porque chamar de “irmão de alma” o que podemos chamar de amigo? Isso não implica levar uma vida sem poesia, sem metáfora – é apenas uma questão de nos emanciparmos da ideia da morte como castigo e de amizade como acessório.
Os repentistas Raimundo Caetano e João Lourenço, que ontem eu ouvi cantar, na Estação Ferroviária de Caruaru, são prova disso: de que de nada adianta ter medo da danada, se o medo não faz que ela não venha, pois que “a marreta da morte é tão pesada/ que a pedreira da vida não aguenta”.
A playlist desse mês é dedicada ao meu amigo, o livreiro e poeta Leo Marona.
A namorada que vos escreve, por aí:
. tem poema inédito publicado na edição de junho do suplemento Pernambuco. Outro do mesmo livro (asma, ainda inédito e sem editora) foi publicado em 2020 também no suplemento – sério, desses deve ser um dos melhores poemas que escrevi na vida kkk
. tem plaquete virtual com traduções de Hans Mangnus Enzensberger (1929-2022) na editora fictícia:
Lidos ou relidos do mês
. A esquerda que não teme dizer seu nome (2009), Vladimir Safatle (São Paulo: Três Estrelas, 2013)
. As mulheres de Tijucupapo (1982), de Marilene felinto (São Paulo: Ubu, 2021)
. Passeio pelas ruas de mim [e de outros], Mailson Furtado (Varjota: Autopublicação, 2018)
. O ponto crítido da noite (Caruaru: Arrelique, 2023) (relido)
. Ovípara, de Liv Lagerblad (Juiz de Fora: Macondo, 2020) (relido)
. Vida dupla, Mariana Ianelli (São Paulo: Peirópolis, 2022).
Esse ano, se estivesse vivo, o vodcabarata completaria 18 anos. Com a efeméride da maioridade da Dra. Vodca em mente, e muito inspirada na newsletter de Gisela Gueiros, minha ideia é reviver um pouco do espírito do finado blog (que era tipo Sex and the city sendo que nos trópicos, ou seja, Sex and Recife kkk), com 12 posts temáticos, no decorrer de 2023, e depois partir pra outra. Gostasse? Aqui tu vê os posts anteriores. Assina, mulé:
Caraca, mulher, como você trabalha! Fez mudança, atravessou o Atlântico e ainda leu, traduziu e publicou esse tanto de coisa boa!
E o Asma tá "ainda inédito e sem editora" por quê?
Ivi, que felicidade te encontrar aqui! Sou leitora do Vodca desde os tempos que os blogs eram tudo mato. Amava tanto seus textos que uma vez fui pra Lisboa e fiquei no hostel que vc indicou e, pasmem, te encontrei lá. Foi demais! Adorei te reencontrar aqui, agora colega de substack