Dezembro de 2023: “Marluce, o que tem escrito hoje na placa do restaurante popular?”
sobre Paulo Freire, minha família e eu
Eu sumiiiiii! Tive que parar tudo na vida para conseguir terminar meu próximo livro, ASMA (assim mesmo, bem escandaloso, em caixa alta), que sai no primeiro semestre 2024 pela editora nós com edição de Schneider Carpeggiani, com quem trabalhei no Jornal do Commercio até 2005 e desde então no que foi o suplemento Pernambuco (aliás, #RIP). Foi por isso que não teve niusleder nem em outubro nem em novembro, mas prometo compensar, estendendo a vida da nius até fevereiro de 2024 (vocês sabem que a ideia original desse substack era fazer 12 posts comemorativos aos 18 anos do meu finado blog vodcabarata, e só).
Foi um processo longo de escrita do livro, mas também de buscar e encontrar editora, e quero escrever sobre ambas as coisas aqui. De momento, queria descansar um pouco. Por isso que em dezembro a nius é meio truqueira: a tradução pro português de um texto meu pra revista Jacobin alemôa (onde trabalho desde 2021), sobre Paulo Freire, mamãe, minhas tias. O texto foi publicado na edição de julho de 2023. Aí vai (leve em consideração que o texto é para um público alemôo, se bem que desconfio que muita gente no sudeste nao faz ideia do que é Pernambuco kkkry), beijos, até janeiro!
“Marluce, o que tem escrito hoje na placa do restaurante popular?”
Em uma das memórias mais antigas que tenho, eu estou chorando, no colo da minha primeira professora, Maria José. Eu devia ter uns quatro pra cinco anos. Na época, eu frequentava a escolinha gratuita, mantida pelas freiras da escola-internato São Vicente de Paulo, no bairro da Boa Vista, numa cidade chamada Recife, num estado chamado Pernambuco, no nordeste brasileiro. Certamente você conhece estados como Rio, ou São Paulo, mas é menos provável que tenha ouvido falar de Pernambuco – então te dou uma pitadinha de contexto: este foi o primeiro núcleo econômico do Brasil, o estado mais rico da América portuguesa, até o século 18; o Quilombo dos Palmares ficava lá (hoje, na atual Alagoas); foi lá aonde a grande escritora Clarice Lispector desembarcou, em 1922, para se tornar uma das maiores escritoras em língua portuguesa de todos os tempos; lá nasceram o poeta João Cabral de Melo Neto, quase-vencedor do Nobel de Literatura de 1999 (levou Günter Grass) e o geógrafo Josué de Castro, autor do espetacular Geografia da Fome (1946); Luiz Inácio Lula da Silva é pernambucano, assim como Paulo Reglus Neves Freire. Nascido no Recife, como eu, Paulo Freire deve ser um dos pernambucanos mais conhecidos do mundo – além de ser, sem dúvida alguma, uma das pessoas mais importantes da minha vida, mesmo eu nunca tendo tido nenhum contato direto com ele!
Mas disso, chorando no colo da minha professora da escolinha católica, eu ainda não sabia. O ano dessa primeira memória é 1986, poucos meses depois do fim oficial da ditadura militar, mas muito antes ainda da redemocratização, que só viria em 1989 (se é que veio…). E o motivo do meu choro era o pavor que eu sentia de ter que marchar junto com os policiais militares e cantar o hino do Brasil em feriados nacionais – e os ensaios para tal aconteciam na quadra da escola, que ficava parede com parede de um Batalhão da PM pernambucana.
A PM que marchava dentro da escola de freiras era a mesma que havia perseguido e matado muitos católicos de esquerda, durante os anos de chumbo. Eu obviamente não tinha idade para politizar nem estre contrassenso, nem o meu incômodo. É que eu cresci numa casa onde as mulheres eram maioria numérica, com homens ausentes por gosto ou por força das circunstâncias – só por isso, o contato não-voluntário com numerosa macharia já seria estranho por si só. E os militares eram, ao menos em parte, responsáveis por alguns dos homens ausentes lá em casa, e em várias das casas que eu conhecia. A ausência do meu pai, por exemplo, se dava, entre outras coisas, por causa dos mesmos militares que marchavam na minha escola – anarquista envolvido no movimento estudantil, ele deixou o país ainda antes de eu nascer. Só nos conhecemos em 1985 ou 1987 (o ano exato difere de acordo com quem me conta a história, já que eu mesma só lembro dele a partir de 1989), quando ele voltou do exílio, na reta final da ditadura, quando as esperanças da ainda-por-fazer redemocratização começavam a dar motivo para existir, com o retorno de Miguel Arraes etc.
Nessas visitas dos militares à minha escola, a professora Maria José me acolhia no meu pavor. Ela nunca me fez sentir mal por não querer me misturar a eles. Não me lembro, tampouco, dela incentivar os outros alunos a participarem da patacoada. Dentro dos limites impostos pelas suas superioras e pela própria repressão, ela encontrou uma forma de se distanciar, discretamente, dos ensaios. Eu não faço ideia se professora Maria José era freireana, e desconheço suas inclinações políticas. É difícil pensar que uma docente de escola católica nos anos 80 pudesse ter simpatia um pedagogo que foi perseguido e preso pelos militares por ser um “traidor de Cristo”. Mas, ainda que seja difícil, não é impossível imaginar ela fosse.
A primeira evidência que, talvez, aproxime a professora Maria José de Paulo Freire é que o próprio Paulo era católico – e dos assumidos. Sem cerimônia, ele dizia que a sua fé interferia, sim, na sua forma de pensar e atuar no mundo: “Nunca precisei de argumentações científicas para me justificar enquanto cristão. Quando muito jovem, eu fui aos morros do Recife, às zonas rurais de Pernambuco, trabalhar com camponeses e camponesas, com os favelados, movido por uma certa lealdade ao Cristo, de quem eu era mais ou menos camarada. Mas o que acontece é que quando eu chego lá, a realidade dura do favelado, do camponês: aquilo tudo me remeteu a Marx. E eu fui a Marx. E aí é que os jornalistas europeus não entenderam minha afirmação: quanto mais eu li Marx, tanto mais eu encontrei uma certa fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo. As leituras que fiz de Marx não me sugeriram, jamais, que eu deixasse de encontrar Cristo nas esquinas das favelas. Eu fiquei com Marx na mundanidade, à procura de Cristo na transcendência”[1].
Este cristianismo que a priori inspira Paulo Freire, passa, com o acirramento das ditaduras na América Latina, a se inspirar no pedagogo. Aqui, portanto, trago a outra evidência que me faz pensar que Maria José pudesse ser professora católica e freireana: Recife em particular (e o Nordeste brasileiro como um todo) era um dos epicentros da Teologia da Libertação, a abordagem teológica que une a fé cristã a um pensamento crítico, de emancipação dos povos oprimidos. Era em Recife que atuavam nomes lendários como os de Dom Helder Câmara e do Padre Reginaldo Veloso, ambos duramente perseguidos pela Ditadura Militar (e pela própria Igreja Católica) por seu engajamento político. Dom Helder Câmara foi um tipo de superstar, o brasileiro por mais vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, com quatro indicações. Localizada numa região historicamente afeita a revoluções, a igreja católica nordestina vinha se tornando cada vez mais politizada – talvez minha professora se incluísse nesse rol.
Seja como for, o dado concreto que tenho é que, apesar de ter nascido, crescido e estudado em Recife, nunca tive contato com sua pedagogia em sala de aula. Em 1989 mudei de bairro e, consequentemente, de escola. A partir de então, tive o azar de receber o que Freire chama de educação bancária, uma formação escolar focada na competição, no cinismo e no instinto de sobrevivência neoliberais. A única coisa que aprendi é que precisava decorar o assunto, tirar nota boa e me destacar enquanto indivíduo, para um dia poder arrumar um emprego e trabalhar até morrer. Nesse contexto, vale lembrar a mais célebre frase atribuída a ele:
“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor”.
Foi por contingência familiar que meu sonho não passou a ser o de me tornar opressora. O humanismo freireano que faltava na minha educação escolar não estava ausente em casa. Meus avós maternos, naturais de Gravatá do Ibiapina, distrito localizado na região do Alto Capibaribe, em Pernambuco, tiveram 16 filhos: destes, nove mulheres, das quais oito chegaram à idade adulta e, destas, seis se toraram professoras (incluindo minha mãe, que hoje em dia está aposentada).
Lá em casa, misturava-se ao nosso catolicismo popular, baseado na caridade e no misticismo, a moral econômica sertaneja de seriedade e honestidade inflexíveis. E nesse contexto entrava um humanismo que Freire organizaria em seus textos mas que, lá em casa, ainda não tinha nome. Que fique claro: ninguém lá em casa era marxista, nem se auto-denominava freireano, mas com tantas professoras da rede pública numa casa só, ele era meio onipresente.
A esta altura deste texto, você deve estar se perguntando: mas o que diabos eu tenho a ver com a vida pessoal da autora deste texto? Nada – e tudo, se formos pensar em termos freireanos. O meu objetivo com esse pequeno relato é apenas mostrar um pouco o alcance da obra freireana – que é, afinal, onde está a sua potência. É precisamente essa capilaridade que confere ao seu trabalho um poder enorme, e faz do seu legado coisa viva. É por isso que ele incomoda e é tão ferozmente combatido pela direita: é porque a obra de Freire é eficaz. Falamos, com frequência, dos seu legado como educador, político, servidor público, escritor, pensador – mas o que mais impressiona é a profundidade com que seus ensinos adentraram a vida das pessoas comuns no sul global.
A “palavração” de que fala Freire propõe transformar o mundo, usando não somente numa pedagogia crítica, mas através de uma mudança na forma como os povos oprimidos convivem e se tratam. Depois de ter contato com ele, é difícil que você se mantenha a mesma pessoa e, consequentemente, que você seja a mesma quando se relaciona com os outros. E, óbvio, um educador que lê Paulo Freire se transforma num outro tipo de educador. O que se aprende com ele, via leitura ou vivência, transforma relações de maneira muito prática, porque ele nos ensina que, para que se possa transformar o mundo, é preciso cultivar a alegria no convívio, a beleza das interações. Dia desses, perguntei à minha mãe e à minha tia Bija qual era seu maior sonho, enquanto professoras brasileiras. Minha mãe respondeu:
Meu sonho é ver estudantes terem trabalho na área de formação, depois de formados. Fui professora da Licenciatura em História num curso noturno, onde a maioria dos estudantes tinha que continuar trabalhando durante o dia. A grande maioria exercia outros trabalhos, como porteiros de prédio, cobrador de ônibus, no comércio. Apenas uma minoria trabalhava na área de formação. Meu sonho é que essas pessoas possam realizar os sonhos delas, trabalhar com o que estudaram, e não apenas para não pagar as contas.
E tia Bija me contou essa história, que ilustra um pouco essa autotransformação que descrevo acima:
Quando eu assumi minha primeira turma de Alfabetização de Jovens e Adultos, no meu primeiro dia com eles fiz uma dinâmica do pirulito. Ao término da dinâmica (com alguma dificuldade, porque eles não estavam acostumados com a didática de dinâmica), propus uma rodada de diálogo entre todos e escolhi o tema: SONHOS. À medida que eu ia escutando, fui anotando no meu caderno de planejamento. Um dos depoimentos me chamou atenção – uma aluna, contou que diariamente ia a um restaurante popular tomar sopa antes de vir para a aula, e revelou que o sonho dela era poder ler o que estava escrito na placa, mas tinha vergonha de perguntar. Aquilo ficou no meu consciente, eu, uma professora já formada em Pedagogia, já tinha terminado meu curso de pós graduação em Gestão, Coordenação e Organização escolar, e fiquei imaginando o porquê de uma moça jovem não saber ler. Fomos dialogando de muitas maneiras (como propõe Paulo Freire em seu livro Pedagogia da Autonomia) e nesse diálogo, que Freire descreve como “ensinar exige querer bem aos estudantes” (tópico 3.9 do mesmo livro), chegamos ao final do ano. Na nossa última aula trouxe novamente a fonte dos desejos, fomos relembrando o que tinha sido sonhado por eles e na vez dela, indaguei: “Marluce, o que tem hoje escrito na placa do restaurante popular?”. E ela respondeu: “TEMOS SOPA!!!!”.
[1] Entrevista com Paulo Freire:
ai, esse final <3
Que texto lindo. Beijos