A epígrafe do texto “A solidariedade do MST com a Palestina”, que Gerson de Souza Oliveira e Selma de Fátima Santos, militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, escreveram para o maravilhoso livro Gaza no coração, tem como epígrafe um trecho do poema “Explico algunas cosas”, de Pablo Neruda. Li o texto com, literalmente, Gaza no meu coração, e vocês podem ouvi-lo acima.
Já o poema, usado por Gerson e Selma na epígrafe do seu texto, fala sobre a guerra civil espanhola (1936-1939), e o impacto sentido por Neruda quando do assassinato de seu amigo e poeta Federico Garcia Lorca, pelas forças franquistas. Aqui, Neruda é traduzido por Vashti Setebestas, daquele jeito que ela faz com tudo, espalhando o corpo dela no do texto, e o corpo do texto no do mundo — em busca daquilo que temos em comum, ela vai zanzando pelo tempo e pela Terra, seja falando como explorada pelos colonizadores portugueses dos séculos 16 a 19, pelos invasores holandeses do século 17 ou pelos colonos britânicos e israelenses dos séculos 20 e 21 na Palestina. O original em espanhol você pode ler aqui.
VOU TE EXPLICAR UMAS COISAS
TU VAI PERGUNTAR: E onde estão os ipês roxos?
E a metafísica coberta de flor de jitirana?
E a chuva que tanto caía
deixando suas palavras cheias
de buracos e pássaros?
Vou te contar então que tá rolando comigo.
Eu morava na praia
no lugar que vocês hoje chamam Recife
com os bichos, as flores,
as árvores.De lá dava pra ver
a face enorme da Floresta Branca
como um oceano de terra: Caatinga.
Minha casa se chamava
a casa das flores, porque em todo lugar
estouravam as bromélias: era
uma casa linda,
coletiva, de todos.
Fulni-ôs, quem se lembra?
Kambiwá, tu se lembra?
Kariri-xocó, parentas,
sob a terra,
se lembram da minha casa na floresta, onde
a luz de junho enchia de flores tua boca?
Irmão, irmã!
Tudo
era aquela zuada, o macaco guariba,
a arara,
onde séculos depois construiriam o mercado de São José,
e venderiam peixe e jurema,
o angico pra asma, coisas que antes
tinha na floresta, de graça,
grátis as batidas do coração coletivo, profundo,
de pés e mãos enchendo o que seriam ruas,
em metros, em litros, a essência
amolada da vida,
peixe gordo de Goiana,
a textura dos telhados de Tejucupapo,
de onde se joga água fervendo,
delirante alfenim de tantas cáries,
holandeses enxotados para o mar.Uma manhã tudo estava pegando fogo
de repente incêndios matinais
saíram do esgoto
comendo gente
e desde então fogo:
pólvora desde então:
e desde então sangue.
Milícias de maloqueiros em navios,
uns almas sebosas, enfeitados,
bandidos com bênção de frades questionáveis
que vieram do mar para matar crianças,
e floresta afora sangue de criança
simplesmente escorreu, como sangue de criança.Urubu que urubu não comeria,
pedra que até a avelós cuspiria,
coral que até a coral odiaria!Na sua frente eu vi o sangue
do assim-chamado Pernambuco subir
pra te afogar numa única onda
de orgulho e azagaia!Fidalgos
traidores:
olhe para minha casa morta,
veja minha terra, saqueada:
de cada taba morta sai tacape
em vez de flores,
de cada buraco da terra
um parente sai,
de cada criança morta sai uma borduna com olhos,
de todo crime nascem flechas
que um dia ocuparão o lugar
do coração.Tu vai perguntar: por que minha poesia
não fala de sonho, da flora,
dos cânions do meu grande rio?Venha ver o sangue nas praias,
venha ver
o sangue nas florestas,
venha ver o sangue
nas ruas!
O livro Gaza no coração foi um presente que ganhei do companheiro de #palestinalivre Benjamin Moser, que é um dos autores que integram a publicação, com um texto espetacular sobre o sionismo como sendo inexoravelmente colonial. Ele também vem usando sua nius para espalhar informação de qualidade sobre a guerra colonial na Palestina.
O ponto alto do livro é a presença de vários escritores palestinos ou brasileiros de origem palestina, como Farah Chama, Kais Husen e Hyatt Omar. Há ainda vários autores internacionais, como Silvia Federici e Tithi Bhattacharya (cujas contribuições são nada menos que maravilhosas). Mas não posso deixar de pontuar, que, infelizmente, entre os brasileiros, há muito poucos do não-sulsudeste, pra variar. Pelo que contei, apenas três (Jones Manoel, Casé Angatu e Milton Hatoum) num total de 45 autores. É difícil entender o sãopaulocentrismo do livro, que traz um milhão de autores da USP mas apenas dois nordestinos. Considerando que a migração de Palestinos para o Nordeste começou já no fim século 19, que Pernambuco tem a segunda maior comunidade Palestina no Brasil (segundo dados de 2002 do jornalista João Sales Asfora), que a pesquisa sendo feita nesse âmbito nas universidades nordestinas é significativa e, por fim, que a ocupação dos territórios Palestinos oir Israel tem sido tematizada sistematicamente pelos ativistas da Aliança Palestina-Recife desde 2016, era de se esperar que pesquisadores-ativistas como Hissa Mussa Hazin (UFPE) estivessem presentes num livro como esse. (Isso sem contar os esforços da UFPB em reparar os quase cem anos de injustiça literária, histórica e social contra Permínio Asfora (1913-2001), escritor Palestino nascido no Piauí e criado na Paraíba. Segundo os estudiosos da sua obra, Permínio foi o primeiro Palestino a publicar um romance no Brasil e é o autor de Noite grande, a primeira obra literária brasileira que possui um protagonista Palestino — baseado no próprio pai de Permínio, Sales Asfora, que emigrou pro Piauí no início do século 20. O camarada Permínio foi excluído do cânone nacional por seu posicionamento político e sua luta antilatifúndio, a partir dos anos 1930 e, ouso dizer, pela xenofobia antinordeste. Mas já estou desviando por demais do assunto principal dessa nius, e corro o risco de soar mesquinha, então deixo para falar mais disso, e de Permínio, outro dia).
Gaza no coração, que foi organizado por Rafael Domingos Oliveira, é sem dúvida um dos meus livros do ano. Sua leitura vale muitíssimo a pena – não somente pelos textos, mas também porque os eventuais lucros obtidos com a sua venda serão revertidos para iniciativas de apoio ao povo Palestino.
sempre maravilhosa, necessária, forte, poeta. mulher guerreira.
sempre maravilhosa, necessária, forte, poeta. mulher guerreira.