Um sentimento terrível de culpa e impotência, em relação ao genocídio do povo palestino, que já dura um ano, me fizeram reativar a nius. Não que eu já não estivesse sentindo uma tristeza profunda desde outubro de 2023, mas meu mal-estar atingiu o fundo do poço quando, algumas semanas atrás, me vi compartilhando palco com uma escritora alemã que nega o genocídio e colabora com instituições alemãs que defendem a guerra. As causas materiais, mas também as consequências morais da minha participação nesse evento, serão problematizadas em outro momento (spoiler: o evento não era sobre a guerra, e eu, que ganho 790 euros por mês trabalhando no SAC de uma editora, e pago um aluguel de 450 euros, precisava do cachê, sobretudo porque levei VÁRIOS calotes de frilas em 20204; por outro lado, isso não é suficiente para me convencer de que eu deveria ter compartilhado palco com a escritora em questão). Por enquanto, apenas tentarei trazer, nas próximas semanas, traduções de poetas comprometidos com a causa Palestina. É um gesto insignificante diante de um genocídio, mas é, ao menos, genuíno.
Hoje apresento vocês a Tracy Fuad, poeta estadunidense de ascendência curda, que vive em Berlim desde 2020. Em 2022 fui a uma leitura dela, junto com outro grande poeta pró-Palestina, Christian Hawkey, e ela me impactou profundamente.
O poema abaixo, escrito em inglês e traduzido por mim para a nius, está no livro about:blank, escolhido por ninguém menos que Claudia Rankine como vencedor do Prêmio Donald Hall 2020, no qual Tracy tenta dar conta da sua ancestralidade, desse estar entre dois mundos, duas línguas; ser racializada em um lugar, não ser racializada em outro. Nas palavras da própria, about:blank “é muito mais um trabalho sobre meu próprio relacionamento com minha ascendência curda e o nome que veio com ela. Escrevi muito dele enquanto vivia no Curdistão, tentando aprender curdo”.
Ao contrário de tantos escritores isentões (isso sem contar nos ativamente racistas) vivendo na Alemanha, Tracy é, graças a Deus, como esta que vos fala, a favor do direito à vida e a autonomia do povo da Palestina. Em entrevista de março de 2024 para a Los Angeles Review of Books, ela disse:
Tem sido absolutamente assustador testemunhar a maneira como as organizações culturais na Alemanha responderam ao genocídio em andamento na Palestina. Houve muito poucas instituições culturais que se solidarizaram com os palestinos, e as que o fizeram foram rápida e drasticamente punidas e desfinanciadas. (...) Em um protesto, a polícia confiscou um pôster que eu fiz, que dizia "parem o genocídio". É horrível e assustador usar um trauma histórico para apoiar outro genocídio. E o fato de que essa postura na Alemanha hoje resulta no cancelamento de exposições, prêmios, discursos e inaugurações deve nos perturbar a todos. É um esforço flagrante para silenciar indivíduos e instituições. Ouvi dizer que há muitos líderes institucionais que não apoiam essas políticas, mas como as artes são amplamente financiadas publicamente na Alemanha, as instituições perderão seu financiamento se apoiarem vocalmente a Palestina ou criticarem Israel. É macartismo, (…) há essa manipulação em massa da linguagem e da retórica acontecendo, que está alimentando as correntes predominantes de crescente etnonacionalismo e xenofobia.
Segue o poema, que não tem título:
Chamei as passagens baratas para o Curdistão em 2016 de "saldão do Estado Islâmico"
A simultaneidade alfineta meus sentidos
Suas palavras ainda são nítidas, mas meu corpo aumentou umas 20 vezes
Um tipo de zumbido me mantinha acordada de manhã cedinho
Um tipo de som de debulha, pulsando, como eu imagino que seja a radiação
Googlei "alertas de tsunami", mas o celular descarregou antes do resultado, então voltei a dormir
Este é meu cantinho na internet
Tenho uma regra de arrastar para a esquerda, toda vez que uma foto do Tough Mudder aparece
O cuidado, em um país onde a sobrevivência está ligada ao comércio, pode ser sequestrado pelo comércio (Yanyi)
A pior coisa sobre o funeral do ativista branco que morreu em Rojava
Foi a infantaria de senhores Curdos usando cemedani e ranku choxa
Como se tivessem dado mil vezes control cê do meu avô no Curdistão, e control vê dele em Manhattan
Tipo, eu amo que finalmente estejam dizendo a palavra Curdo sem indiferença ou sorriso de escárnio
Mas todos os esquerdomachos na Union Square usam bandeiras do YPG como um distintivo
Porque eles foram lá por alguns meses e aprenderam a atirar e viram alguém morrer
Mas você só ouve falar dos mortos quando são brancos
Como se a guerra estivesse sendo travada por anarquistas do Ocidente
E não pelos pesh merga, aqueles para quem a morte não é o que se faz nas férias
A manifestação máxima do RPG é o terrorturismo participativo
Há até o precedente de Jerry de Seinfeld
Que levou seus filhos para Israel e pagou para fingir que eram soldados da IDF matando Palestinos
Bem, eu também posei com a arma do meu avô na primeira vez que fui ao Curdistão
Somos profundamente, profundamente condicionados, um homem me diz
Mini-glossário das coisas que eu não soube traduzir, ou que não têm tradução pro recifense:
Tough Mudder é uma série de eventos de resistência em que os participantes tentam percursos de obstáculos de 16 a 19 km, cujas obstáculo geralmente jogam com medos humanos comuns, como fogo, água, eletricidade e altura
Yanyi é um poeta e crítico americano, ganhador do Prêmio Yale Series of Younger Poets em 2018 por seu primeiro livro, The Year of Blue Water
Cemedani é lenço que faz parte da vestimenta tradicional do oriente médio, também conhecido como kufiya.
Ranku choxa é parte da vestimenta tradicional masculina curda, que consiste calças largas, uma camisa e uma jaqueta, com um cinto largo feito de tecido, usado por cima.
YPG (Yekîneyên Parastina Gel, em curdo) significa Unidades de Proteção Popular e são uma organização armada curda da região do Curdistão sírio.
Pesh merg é o termo utilizado pelos curdos para se referir aos combatentes de seu exército e significa literalmente "aqueles que enfrentam a morte".
Mulher, nao sei se vc sabe, então vou falar: suas traduções desde o vodca sempre me inspiraram muito e agora tou estudando tradução. Tava com saudade de ler vc através da poesia de outras e essa edição foi um mega presente. Ia mandar no grupo da disciplina da usp, mas nunca se sabe se há s1onistas no grupo então desisti. Mas saiba que tá foda, quero ler o livro e sinto muito pelo evento que teves de participar. Espero que fique em paz consigo mesma e aguardo o relato quando conseguires escrever. Beijocas.
Obrigada por compartilhar, fazia tempo que queria conhecer mais autores e autoras palestinas. Já vou buscar esse livro!