Vashti versus a xenofobia vossa de cada dia
a galera tem mais em comum com Léo Lins do que eu gosto de admitir
Esse mês marca um ano da primeira turnê de ASMA no Nordeste. Em junho de 2024, passei por Caruaru, João Pessoa, Natal, Recife e Santa Cruz do Capibaribe, na turnê de lançamento que, zero por acaso, rolou durante as festas de São João. E a experiência foi tão transformadora que, passado um ano, ainda não consigo escrever direito sobre ela. Talvez nunca consiga.
Mas como em junho de 2025 a xenofobia antinordeste voltou a ser notícia, com a condenação do comediante criminoso Léo Lins, achei que era hora de tentar compartilhar um pouco dessa experiência aqui com vocês. Mas antes vou falar de outra coisa, pra falar da mesma coisa:
Dia desses terminei A Selva, livro do escritor português Ferreira de Castro, publicado em 1930, de quem nunca tinha ouvido falar. Trombei com seu nome durante minhas pesquisas sobre Permínio Asfora e, por causa da descrição do livro feita por Permínio, tive que ir atrás. A selva se baseia na experiência de Ferreira de Castro na Amazônia, onde viveu em 1912, trabalhando num seringal (primeiro como seringueiro, depois como contador).



A história central é basicamente o despertar do protagonista, Alberto, para o horror que se passa nos seringais. E a alegoria principal deste despertar é a relação de Alberto (o alterego do autor) com o seringueiro que se tornaria seu melhor amigo, Firmino — um cearense traficado para o seringal sete anos antes. Se Firmino é cearense mesmo nunca saberemos pois, no livro, todos os Nordestinos são chamados de cearenses.
A absoluta maioria dos seringueiros eram Nordestinos trabalhando no seringal em situação análoga a escravidão. No começo da narrativa, Alberto é extremamente preconceituoso com eles, que chama de “gente inexpressiva”, “mazorra”, “sem alma”, “ignorante”. Alberto contrasta a figura do indígena (“generoso e magnifico”) com a do Nordestino (“rude” e “aparvalhado”), criando uma separação que na verdade não existe — pois, como aprenderíamos com Chico Mendes, indígenas e Nordestinos tinham mais em comum do imaginavam, pois eram vítimas do mesmo algoz. É na convivência com Firmino que Alberto vai descobrir que — uau! — Nordestino também é gente e que Firmino, tal qual ele próprio, tem delicadezas e sentimentos nobres, como solidariedade de classe. Quem diria, né kkk?
Mas se você acha que esse tipo de pensamento faz parte do tempo de Ferreira de Castro, está enganada. Como falou esses dias Octávio Santiago, no que diz respeito ao preconceito antinordeste “o Brasil da época ainda é o Brasil de hoje”. Assim, tal qual antigamente, Léo Lins também não acha que Nordestino é gente:


Sob a genérica defesa da liberdade de expressão, veículos historicamente xenofóbicos, como a Folha e o Estadão, saíram em defesa de Leo Lins. Nada de novo no front: como eu merminha (kkk) mostro em ASMA, baseada not em vibes mas em PESQUISA HISTÓRICA, estes e outros jornais sudestinos contribuíram paulatinamente com a criação de estereótipos que vão, depois, moldar o senso comum e que interferem não somente na forma como as pessoas se relacionam e se comunicam, mas também nas decisões tomadas pelas instância de poder. Por isso é que é preciso sim enquadrar Leo Lins e seus comparsas. Como muito bem disse o professor Acauam Oliveira, “a interdição das piadas de Léo Lins não é um ataque a ‘liberdade de expressão’ e sim parte de um processo mais amplo e necessário de interdição do discurso fascista brasileiro”.
Com tuuudo isso dito, volto ao começo do texto: quando anunciei que abriria a turnê de ASMA no Nordeste, muita gente estranhou: “Mas não vem pra SP?” ou “E no Rio, não tem?”, como se fosse um dado óbvio que livro se lança é no sudeste. Mas pior que essas perguntas eram as mensagens que se impressionavam com a notícia, no melhor estilo “não sabia que tem público leitor no NE”. Véi plmdds.
A assunção, que seria por si só abilolada, fica ainda mais absurda se considerarmos que, segundo as pesquisas de 2019 e de 2025 do Instituto Pró-Livro, das 10 capitais onde mais se lê no Brasil, CINCO ESTAO NO NORDESTE, com João Pessoa liderando o ranking em ambos os levantamentos! E isso APESAR de sermos a região com maiores índices de analfabetismo do país. E ó: o alto índice de analfabetismo fala mais sobre a falência do estado de direito no Brasil, do que sobre o Nordeste. Já o alto índice de público leitor fala de que? Da nossa maravilhosidade, óbvio kkk <3


E tem mais: além da surpresa com a opção de priorizar o Nordeste, ainda existe a falácia da inviabilidade de realizar eventos literários no não-sudeste. Isso é pura xenofobia internalizada. É verdade que o meio editorial no Brasil sofre com a falta de políticas públicas, apoio, incentivo, investimento. Também é verdade que pequenas editoras sofrem o dobro. Mas, no que diz respeito de des-sudestinizar seus imaginários, todas sofrem de falta de vontade política, não somente em relação aos autores que publicam (quase sempre sudestinos), mas também na tomada de iniciativa pra ir atrás de parcerias em outros estados. Aqui aproveito pra agradecer à editora Nós, que apoiou a turnê NE cobrindo custos de passagem de ônibus e hospedagem!


Fica a dica pra editoras e escritores: vocês vão encontrar público leitor e público pagante for do sudeste, tá? Como disse Regina Azevedo, poeta potiguar: o Nordestino prestigia eventos que acontecem nos outros estados Nordestinos e podemos provar: no lançamento de Caruaru teve gente que veio de Maceió, no lançamento de João Pessoa teve gente que veio de Recife!




Todos os eventos no NE foram uma festa, casas cheias, gente linda, debate massa, comida de São João, forró, paquera, turistagem, arozz de leite. E livros esgotados. O ponto alto de toda a turnê foi o evento em Santa Cruz do Capibaribe: organizado pelo coletivo Chocalho no meu amado bairro da Palestina, o que era pra ser lançamento de livro virou uma assembleia popular, com o espaço lotado que acabou abrigando um toró de ideias sobre as necessidades do território e propostas de resoluções daqueles problemas. Foi um negócio lindo, mas tem mais: de todos os lançamentos, foi lá onde vendemos mais livros. Nenhuma surpresa pra mim — mas esse resultado impressionou vários sudestinos pra quem contei essa história.



Mas toda vez que alguém se surpreende que um nordestino conseguiu alguma coisa, é precisamente essa surpresa que denuncia o racismo. Pois como bem disse matuto Renan Porto, pesquisador do sertão da Bahia e doutor em Direito pela Universidade de Westminster, quando ele diz que “Isso é o que está na base do racismo: a negação das capacidades racionais e intelectuais de alguém”.
Em outubro de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a considerar crime de racismo a discriminação contra Nordestinos. Esse é um ponto extremamente interessante já que, para muita gente, discriminação regional e racial não têm nada a ver um com o outro. A pesquisadora da UPFE Sofía Zanforlin vai na contracorrente e defende que não se deve chamar de xenofobia o que na verdade é racismo, opinião compartilhada pela jornalista turco-alemã Ferda Ataman. Se considerarmos os dados do IBGE de 2022, que apontam que apenas 27% da população Nordestina se considera branca, enquanto esse número sobe para 73% no Sul e 50% no sudeste (regiões de onde parte a xenofobia), podemos dizer que a lei leva em consideração a realidade concreta dessas regiões. Dessa forma, a tipificação do crime de xenofobia dentro da lei de racismo leva em consideração uma minoria social que é, na verdade, maioria numérica. E já passou da hora do Brasil tratar sua maioria numérica com prioridade.
Turnê ASMA Nordeste 2024: eu fui, eu tava <3
Não faz muito tempo que cheguei no Brasil e só estive em São Paulo (e já quero ir embora kkk), mas por aqui podem falar que tem muitas “oportunidades” (literárias neste caso), mas engajamento próximo e realmente humano, não tem. É incrível ver como tem tantos lugares que conseguem criar uma reputação “positiva” totalmente desligada a realidade real. Sempre muito gostoso te ler. Sempre aprendo mais sobre este lugar e sobre o mundo através das tuas palavras.