Fevereiro de 2023: chapadelic
Uma chapa é sempre uma foto, mas uma foto nunca é só uma foto kkk
Um ano antes do nascimento do Instagram, da invenção da câmera frontal e dos filtros digitais, a drag queen mais famosa do planeta passou sete semanas apresentando, toda desfocada, aquele que se tornaria o maior programa viado da história da televisão. Era a primeira temporada de Ru Paul’s Drag Race, e o Instagram podia até não existir, mas o etarismo (discriminação baseada na idade), sim. O ano era 2009 e, para parecer mais jovem, Mama Ru mandou tacar vaselina nas lentes:
A analógica técnica remete a uma tradição do início da fotografia, conhecida como pictorialismo. Mas que carajos era isso? Falando muito resumidamente: quando a fotografia nasceu, ali pelo começo do século 19, ela foi escorraçada do mundinho das arte porque seria algo mecânico, e não artístico. Aí os fotógrafo, para provar que fotografia era tipo pintura e portanto arte sim senhor, se danaram a manipular o resultado final. O objetivo era fazer com que a chapa parecesse o menos “realista” possível e lembrasse uma pintura impressionista.
Para conseguir tais resultados, fotógrafos usavam várias técnicas de manipulação – interferências nos equipamentos, duplas exposições, experimentações com químicos e papeis etc. Mas a técnica mais comum, e mais fácil de usar, consistia em melecar, na lente das câmeras, tudo quanto era porcaria (vaselina, vapor, gordura), tal qual Mama Ru, em 2009 (e Mama Adelaide, em 2023):
O pictorialismo durou até +– 1930. E agora, 100 anos depois, temos Photoshop, filtros de Insta e TikTok, app de edição de imagem etc. O objetivo e os métodos são outros, mas a prática é a mesma. A ideia de modificar uma imagem – seja com qual objetivo for – faz parte da prática áudio/visual porque modificar as coisas ao nosso redor faz parte da vida, como nos lembra nosso taurino preferido, o véi Marques, no volume 1 d’O Capital: o ser humano, agindo sobre a natureza externa e modificando-a, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (pág. 188 da edição da Boitempo). Dessa forma, não tem como falar de manipulação com moralismo ou saudosismo porque, da invenção da roda e à vaselina de Ru Paul, interagir e transformar as coisas faz parte da nossa humanidade.
Mas, ainda que não dê pra tratar dessas interações com moralismo, todos esses processos trazem consigo questões de ordem ética. No livro O desejo dos outros – Uma etnografia dos sonhos yanomami, Hanna Limulja explica que os Yanomami têm uma relação de reverência e respeito com sua Imagem (utupë) que, por sua vez, é uma entidade autônoma, com vida própria – e essa vida é vivida no sonho Yanomami. E no seu artigo Como alcançar o céu Yanomami se a imagem capturada está disseminada na internet?, a autora nos explica que os Yanomami, ao se deixarem fotografar, em janeiro de 2023, expuseram seu utupë, arriscando sua vida após a morte, em nome de poder, talvez, salvar a sua vida na Terra. Um gesto poderoso de autodefesa contra o genocídio – mas que representa, no entanto, a possibilidade de morte da morte. Essa negociação deve ter sido muito dolorosa, e saber disso não pode nos deixar indiferentes.
Há aqui, portanto, uma diferença crucial entre o que “imagem” significa para a fotografia ocidental, e o que significa para os Yanomami. Ao contrário dos editores da Folha de São Paulo (que estampou, na sua capa, uma fotomontagem digital, na qual o presidente Lula aparece simbolicamente ferido de bala), os Yanomami não têm o luxo de poder ser indiferentes com aquilo que fazem de sua imagem. E, ao contrário do jornal golpista, que não tem nada a perder ao dizer “cada um interepreta a foto como quer”, a escolha feita pelos Yanomami é de tudo ou nada. A questão levantada por eles é, literalmente, de vida ou morte, e os questionamentos sobre imagem fotógrafica que eles nos apresentam, de ordem social, política, ética e filosófica, são muito mais sofisticados e radicais, do que as reação xexelenta da Folha a respeito.
E o que isso tudo tem a ver com o pictorialismo? Quando a autora da foto, Gabriela Biló, defendeu sua chapa dizendo que era montagem, só fez expor ainda mais a fragilidade ética da imagem. Porque, enquanto nos primórdios da fotografia, era praticamente impossível prever um resultado final de uma montagem (já que os processos eram analógicos), atualmente tudo que usar tecnologia digital acontece diante dos olhos do autor. Isso dá aos fotógrafos muito mais ciência do que se está fazendo e, por isso mesmo, exige muito mais responsabilidade. Tudo o que acontece num processo digital é escolha. Assim, a vaselina de Ru Paul e a decisão dos Yanomami de se deixarem fotografar, ainda que tenham implicações completamente distintas, são processos responsáveis – pois conscientes – de manipulação da (auto)imagem.
Para terminar essa segunda newsletter deslizando igual vaselina, pega essa playlist aquê, meu bombom:
Chapas e viadagens
Com uma prática que é antídoto para o fotojornalismo da ironia, indico o trabalho do Coletivo Acauã e o de Géssica Amorim, poeta ops fotógrafa do sertão pernambucano, que bate as chapas mais bonitas do planeta.
Falando em documentaristas nordestinos, recomendo ainda o trabalho de Zilda Farias, de Petrolina; Breno Farias, dos Cariris Velhos, Paraíba; Pedro Têia, representando o baixo São Francisco, em Alagoas; e Bichos da Caatinga, no Alto Capibaribe, agreste de Pernambuco, que misturam audio/visual com luta pela valorização e preservação da Caatinga (único bioma 100% brasileiro, aprendam).
Essas chapas do beija-flor de gravata vermelha, feita na Bahia por Thiago Zanetti, e do bico-reto de banda branca, feitas por Breno Farias na Paraíba, me lembraram os looks verde-mára da coleção Métiers d'art 2022/23, da Chanel:
A chapada que vos escreve por aí:
Já que o tema é foto, tá ligada que eu já fui fotógrafa, né?!
Em 2017, participei da FLIP com uma performance chamada mimimi, a convite da então curadora Joselia Aguiar. A performance, sobre fotos de feminicídios e dos corpos das guerrilheiras executadas pela ditadura militar, é permeada de citaçõesde do livro Diante da dor dos outros, de Susan Sontag.
Falando em Sontag, escrevi uma resenha sobre a deliciosa biografia dela, de Benjamin Moser, para a edição de outubro de 2019 do suplemento Pernambuco.
Por último mas não menos importante, esse mês eu recebi os alunos do Pratt Institute na minha casa, para uma aula sobre processo, na qual falei como minha prática como fotógrafa influencia fortemente meu processo de escrita:
Uma fotógrafa aposentada lê (ou “lidos dos mês”):
agora e na hora de nossa morte, de João G. Júnior
Tradições Populares da Pecuária Nordestina, de Luís da Câmara Cascudo
e se eu fosse máquina, de Suene Honorato (não achei link!)
Love, Pamela, de PAMELA FUCKING ANDERSON!
E se você chegou até aqui e tá se perguntando “que djabéisso?”, eu explico: esse ano, se estivesse vivo, o meu blog vodcabarata ponto blogspot completaria 18 anos. Com a efeméride da maioridade da Dra. Vodca em mente, e muito inspirada na deliciosa newsletter da minha amiga Gisela Gueiros, minha ideia é reviver um pouco do espírito do finado blog (que era tipo Sex and the city sendo que nos trópicos, ou seja, Sex and Recife kkk), com 12 posts temáticos, no decorrer de 2023, e depois partir pra outra. Gostasse? Janeiro foi sobre os corno, e mês que vem tem mais! Assina aqui, mulé:
Que bom ter você de volta.
graças a deusa sou dona e proprietária de 3 chapas ADELAIDE IVANOVA.
amei essa edição, não sabia do rolê da ru paul.
besos