Ainda que todos os coachs, menes, Luciano Ruque, que toda a balela liberal da meritocracia tentem te fazer crer que yes you can, sozinho você não can porra nenhuma, meu bombom. É assim que vamos começar essa nius: pelo fim.
Essa niusleder começou ano passado com o intuito de fazer justiça à finada Dra. Vodca, personagem fictícia do vodcabarata.blogspot, conselheira amorosa/sexual que nasceu em 2005 e morreu durante o processo judicial que movi contra meu agressor, em 2008. Ano passado, se estivesse viva, Dra. Vodca teria completado 18 anos, mas não pôde ser assim, por motivos de: patriarcado.
Perdi essa cria mas, nos anos seguintes, outra imagem poderosa foi nascendo dentro de mim – uma figura mítica/mística, sem corpo nem gênero nem espécie definidos, um pouco de todos os seres vivos que sofrem e são explorados no capitalismo. Primeiro ela se chamou Catarina (por causa da personagem do bumba-meu-boi, esse auto de Natal abolicionista cujo teor político-criativo ninguém dá muita bola e trata por “folclore”), depois Rosa (obviamente por causa da Luxemburgo), e no fim virou Vashti (que certamente não foi A primeira caminhante da história das mulheres, mas foi uma das primeiras caminhantes por insubordinação da qual se tem notícia). Primeiro sem sobrenome, depois Setemares (em homenagem ao personagem homônimo de Derek Walcott em Omeros), depois Setecolinas (em homenagem às sete colinas de Garanhuns) depois por um momento ela foi Vashti Seteilhas (em alusão às ilhas de Recife, mas na vida real são pra mais de 15 ilhas kkk teile na licença poética), até virar Vashti Setebestas, por causa da besta-fera nordestina, mas também por causa dos sete animais nos quais ela se transmuta no decorrer da sua longa caminhada (vaca, boi, piranha, cabra, mula, guaiamum e a La Ursa).
E isso me leva para o fim, que é o começo: se ninguém faz nada sozinho, certamente ninguém escreve livro sozinho. Mas é delicado assumir isso quando se é escritora mulher, porque no capitalismo patriarcal ninguém dá o devido crédito ao trabalho das mulheres (seja o assalariado, o criativo, o político ou o de cuidado/subsistência). O sucesso de uma mulher sempre é creditado a algum mentor ou algum descobridor – a algum homem que seja responsável por essa “exceção”. Isso porque no capitalismo patriarcal sempre somos tratadas como incapazes e, se conseguimos alcançar algo, só pode ser porque algum macho ensinou a gente a fazer as coisas direito. Né foda.
Eu levo todos os méritos de ASMA – sendo ele bom ou ruim, quem fez tudo ali fui eu. Mas, por outro lado, sem Vashti, essa minha amiga imaginária, e sobretudo sem as centenas de pessoas da vida real ou da literatura, ASMA não seria – ou não seria o que é.
Quando Joselia Aguiar lançou sua biografia de Jorjamado (aliás, devo muito aos dois na construção do meu livro), ela me disse que uma das coisas que mais comentaram, como elogio ou crítica, foi sobre o fato de que ela escreve “como Jorge”. Quem queria elogiar, dizia era massa ela escrever feito ele. Quem criticava, a acusava de querer imitar a voz de Amado. Joselia me disse: “O povo não sabe que é assim que a gente fala”. Exato. Ora, Joselia é baiana, Jorge é baiano, ambos escrevem na mesma língua – o nordestinês baiano. Não é Joselia que escreve como Jorge, é o povo que não conhece essa língua. Diante da minha revolta (“mentira que disseram que tu tava macaqueando Jorge amado hahaha o povo é muito otário”), Joselia me respondeu de forma certeira: “Disseram, né. [Pra essa gente] Mulher não faz nada sozinha kkk”.
Isso ressoou em mim por muito tempo. Joselia tá certa. Não é somente que nos tratam como incapazes, nos tratam como incapazes inclusive de re/inventar nossa própria cultura! No caso de Joselia, não conseguiam sequer imaginar a possibilidade de que ela escreve não como Amado, mas que ambos escrevem na mesma língua. E se uma mulher for mexer com o cânone ocidental então, aí é que a capacidade dela vai ser posta à prova. Vou contar uma semi-fofoca (semi porque não vou dar nomes kkk foi mal aê):
Em outubro do ano passado, fiz uma leitura em Berlim, e apresentei alguns poemas de ASMA, que descrevi como meu “próximo livro, um épico escalafobético”. No fim do evento, um sujeito veio puxar assunto: “quer dizer que você escreveu um épico?” e eu, já sabendo onde essa conversa ia parar, apenas respondi “foi” kkk. Ele, sem desistir: “Mas épico é coisa de gente grande” :O Eu entendi o que ele quis dizer, mas me fiz de doida: “Por trás dessa cútis de bebê tem uma mulher de 40 anos” [viva o retinol], para o que ele respondeu: “Não me refiro a idade, me refiro a cacife”. Voilá. O que ele me disse, sem ter que dizer, foi: você não é omi, você não é acadêmica, não pesquisa os grego, você não é sudestina, como ousa escrever nesse gênero de “gente grande”?
Ah, Adelaide, lá vem tu de novo com sua paranoia de que todo mundo é antinordeste. Ora, escrevi um livro inteiro pra provar que antinordestismo existe, não por forças da natureza, mas porque classismo e racismo existem, e existem no Brasil com as especificidades brasileiras! Mas só pra terminar de contar a semi-fofoca, foi assim que eu encerrei a conversa: “pode até ser, mas cacife eu tenho, pois aprendi com os melhores: os repentistas e cantadores de Caruaru”. Ora, o que é a literatura cordel senão (mas não somente!) a versão brasileiro-nordestina dos épicos gregos?
Assim como não passa pela cabeça das pessoas que não foi Jorjamado quem inventou o nordestinês-baiano e que, ao escrever com ele, Joselia não estava imitando ninguém, também não passa pela cabeça dessas pessoas que aquele cânone que eles acham que é intocável, o único, o superior, o sagrado, não é nem intocável, nem superior, nem sagrado. Deve ser difícil de aceitar que assim-chamados “matutos” e “mulheres” (ou seja, gente que não é “gente grande”) peguem esse épico véi e façam dele o que bem quiserem.
É por isso que fazer releitura de poemas clássicos/canônicos é um exercício poético tão importante, para mim, quanto escrever um poema inédito. Nesse sentido, deixo aqui um poema inédito ops uma releitura inédita de um poema, que podia ter entrado em ASMA, mas ficou de fora:
Canção dos quebra-quilos
uma releitura de um poema famosoMinha terra tem medidas
como a braça e o polegar.
As medidas que aqui se usa
não são as que se usa lá.Nossa braça é uns dois metros,
três centímetros a polegada.
E se o meu corpo é a medida
nunca serei enganada.Mas o patrão quer mudar tudo
pra mais e melhor roubar.
O sistema vem da França,
é abstrato, ruim de contar.Minha terra tem senhores
igualzinho aos que tem lá.
Latifúndio e agronegócio
é praga em todo lugar.
A diferença é que os daqui
se curvam para os de lá.
Mas quando a gente se recusa
para eles a se curvar,
Estadão e Vargas Llosa
chamam a gente de matuto.
Mas a gente é quem melhor sabe
o que é melhor pra nós, e justo.
O contexto desse poema é a revolta dos quebra-quilos (que rolou no Nordeste do Brasil em 1874 e que é devidamente homenageada em ASMA no capítulo cinco) e sobre a forma como tanto “pensadores” da época, quanto os contemporâneos (feito o arrombado do Vargas Llosa) trataram os revoltosos. Para eles, esses nordestinos eram incapazes analisar sua realidade material e de produzir criatividade revolucionária nos próprios termos, respondendo às opressões de forma autônoma! A decisão por fazer uma releitura de Gonçalves Dias pra falar disso é justamente porque o poeta estava na comissão que representou o Brasil na tal “Exposição de Universal” de 1855, em Paris, e participou dos trabalhos que visavam unificar o sistema de pesos e medidas entre “os países civilizados do globo”1 – em outras palavras, que visavam auxiliar a expansão do capital, num novo processo colonial que era exatamente aquilo contra o que os queba-quilos lutariam 20 anos depois! Em 2001, o corno do Vargas Llosa publica, no Estadão (jornal golpista e com histórico conhecido de xenofobia antinordestina), um artigo em que diz que as demandas do Fórum de Porto Alegre são irracionais como as do quebra-quilos2. Que véi tabacudo.
Falando em tabacudo, a conversa com o da leitura em Berlim ficou por isso mesmo: ele tentando tirar meu mérito, eu tentando me dar os méritos aos quais tenho direito. Mas aí entra a outra face da moeda: dar crédito a quem nos forma. Se por um lado, enquanto mulher, temos que sempre bater o pé para termos nosso trabalho reconhecido, por outro lado, como escritora comunista e militante organizada, eu quero sempre creditar tudo que eu faço às pessoas e grupos que me educaram, moldaram meu caráter, minha forma de ver o mundo e imaginar um novo mundo, inspiram minha forma de lutar, de escrever e de me relacionar com tudo o que existe. Três páginas de ASMA são de agradecimentos e ainda foi pouco. E isso sem contar toda uma bibliografia, que fiz questão de botar no ar, que tá no site adelaideivanova.com/asma. Fodasse gatekeeping, e lá tem todas as referências (se bem que ainda tô terminando de subir as leituras que ajudaram a escrever o capítulo 6, mas jajá termino kkk).
Isso tudinho é também para agradecer às quase 2 mil pessoas que me acompanharam nesses 12 posts aqui no substack: foi muito importante ter vocês lendo e dando pitaco nesse revival meio caótico da Dra. Vodca, a Dra. Vashti. Vou reinventar essa nius pra que ela seja algo relevante em 2025, no contexto de ano pré-eleitoral no Brasil. Prometo voltar com tudo ano que vem, e antes disso espero poder ver alguns vocês na turnê de lançamento de ASMA, que vai passar por Setecidades (coincidência?). Começa de semana que vem, dia 6 de junho de 2024, em Recife (é óbvio).
“Parecer dos senhores Gabaglia, Capanema e Gonçalves Dias acerca de um novo systema de pesos e medidas”, anexo E, Relatório do Ministro da Agricultura, Rio de Janeiro, 1860
Não encontrei o original do Estadão, mas encontrei a versão em espanhol para o jornal La Nación, aqui, e uma tradução desta versão para o português brasileiro neste blog duvidoso.
Ah Ivy eu fui leitorinha do Vodca e tô começando a usar Substack! Feliz de ver suas palavras aqui! No momento que escrevi esse comentário você já passou por Natal, onde moro, mas vou dar meu jeito de comprar minha cópia com seu autógrafo. Um cheiro bem grande!
Ohhhh, não passa por Salvador 😭
Vou ver se meus amigos de Recife, algum dos cornos véi podem ir para te prestigiar e pegar um ASMA autografado pra mim.
Um beijo!