Março de 2024: post de despedida, parte 1
porque ela é dramática e a despedida será em duas partes, óbvio, kkk
Pois bem, chegamos ao último post desse revival do vodcabarata. Promessa feita, promessa cumprida: 12 posts temáticos (ou 13, contando a parte 2 deste, que sai em abril) em homenagem à maioridade da finada Dra. Vodca, que chegou aos 18 com corpinho de 41 (o meu kkk), em 2023.
O post anterior dessa niusleder foi sobre como liberdade de movimento e de expressão são a mesma coisa, e como estas liberdades são direito negado para mulheres e meninas. Usei esse gancho para falar de uma mochilagem que eu ia fazer, visitando amigos nessa Europa véia, entre janeiro e fevereiro de 2024. Acabou que a viagem foi agridoce: por onde passei, meus amigos estavam sofrendo, seja pelas dificuldades da vida de imigrante, de inquilino, na saúde mental, ou as três coisas juntas. Detalhei tudo, ou quase tudo, lá no vodca, mas sobre os últimos dias da viagem acabei não conseguindo mais escrever, e lá mesmo explico o motivo (spoiler: a morte inesperada de uma amiga).
Foi durante o trajeto, mais precisamente em Portugal, que tive a última reunião relacionada à edição de ASMA, no fim de janeiro, quando Igor (o revisor), Schneider (o editor) e eu batemos o martelo: “tá pronto”. Trabalhei tanto tempo no livro, e procurei durante tantos anos uma casa para ele, que agora nem consigo acreditar que ele vai sair mesmo, que pessoas vão lê-lo — que vocês o lerão. É engraçado: depois de tantos anos perambulando pelo mundo ao lado, ou dentro, de Vashti Setebestas, agora que terminei o livro não quero mais que ela vá embora, é quase como se quisesse continuar escrevendo pra sempre. Tenho me sentido tão só sem ela, e tão sem consolo por não estar mais dentro do mundo dela, em movimento, resolvendo problemas, pegando cacete com as autoridades, organizando motim, viajando no tempo, que não sei direito o que fazer comigo. O mundo mental de Vashti é o mesmo do meu, e nosso modus operandi na vida (de fazer da luta nossa obra de arte) também, mas eu não viajo no espaço-tempo, nem me transmuto em outros corpos e espécies, como ela faz. Por isso sinto tanta saudade. Eu sou um pouco de Vashti, mas Vashti é tudo que eu queria ser.
No vácuo deixado por ela, que agora vai existir na cabeça de outras pessoas, voltei com força total às atividades da militância (como alguns de vocês devem saber, eu faço parte do movimento por socialização da moradia DWE, que é tipo o MTST alemôo, sendo que diferente kkk). Assumi várias tarefas pra poder continuar exercendo a minha criatividade — pois, como disse o poeta e revolucionário alemão Kurst Eisner (1867-1919), a construção do socialismo é a mais alta expressão da atividade criativa! — seja ajudando a concretizar alguns projetos, ou cumprindo tarefas internas de cuidado.
Quem disse algo semelhante a Kurt Eisner, mas recentemente, foi Silvia Federici: “Mudar o mundo é o trabalho mais criativo e produtivo que podemos realizar”. Mas mesmo a luta sendo um lugar onde a criatividade é imprescindível (pois para vencer é importante poder imaginar o futuro que queremos, o que, irremediavelmente, exige inventividade), ser criativa na arte e na luta são coisas diferentes. Se, na arte, eu posso esticar os limites do possível até onde eu queira, sonhando com (e conseguindo!) tudo, na luta da vida real existem empecilhos que são, muitas vezes, cruéis — já que vivemos dentro do capitalismo e a crueldade é uma de suas características mais fundamentais. Assim, se no livro imagino soluções para os problema da vida, na vida real as dores causadas pelo capital exigem muita, mas muita resiliência. Para ficar só no âmbito do direito à moradia (que é, afinal, a luta que eu luto): foi por sua luta contra especulação imobiliária que Marielle Franco foi assassinada, de um lado; por outro lado, foi a dificuldade de encontrar um lugar para morar um dos motivos pelo qual minha amiga tirou a própria vida, no dia 15 de fevereiro de 2024. Nos despedimos de Marielle em março de 2018, e de Xenia em fevereiro de 2024.
ASMA, que sai 25 de abril, é um livro que nasceu da vontade de investigar despedidas, as voluntárias e as involuntárias. O embrião de ASMA é chifre, que saiu em julho de 2021 e que eu comecei a escrever em 2016. Todo o livro fala de projetos de separação, mas a segunda parte em particular é como se fosse um prólogo de ASMA. Em 2016, ano do golpe contra Dilma Rousseff, eu estava me separando de Jakob, e estava pensando muito sobre essas duas despedidas: de um lado, nos despedíamos de um projeto de país e, de outro, eu me despedida de um projeto de vida. No seio dessa dor, comecei a ver várias interseções entre essas duas perdas, e a pensar nas outras despedidas às quais o capitalismo nos força, seja por meio da migração involuntária, de despejos, de mandados de reintegração de posse, os cercamentos da Idade Média, as sesmarias colonais; seja pelas despedidas que mulheres têm que viver, para encontrar segurança ou um mínimo de dignidade – deixar uma cidade, uma casa, um relacionamento, uma família, um emprego, um país. ASMA responde (sim, responde, chega de só fazer perguntas) aos questionamentos em torno da ideia de perda, inicialmente esboçados em chifre.
Aí, trazendo a ideia de despedida pro meu agora, a segunda vez que nos despedimos de Xenia foi no dia 9 de março, dia de seu funeral. Foi nesse dia que fiquei sabendo da luta travada por ela para ter acesso a cuidados com sua saúde mental: sem encontrar tratamento no SUS alemão, Xenia foi internada numa clínica particular. Quando o dinheiro acabou, ela deixou a clínica com indicação de terapia 3 vezes por semana, que o sistema público de saúde alemão deveria oferecer, mas não ofereceu. Não deu três meses, ela estava morta. Assim, posso dizer com autoridade que, além da questão de moradia, outro fator pelo qual Xenia se matou foi a negligência estrutural do estado capitalista com a saúde mental das pessoas. Vocês não devem saber, pois a contrapropaganda é pesada, mas o sistema de saúde pública alemão está em frangalhos, e o acesso à psiquiatria/psicologia é dificílimo — e, quando a pessoa finalmente consegue atendimento, é com número pré-definido de sessões, independente do nível de sofrimento psíquico ou necessidade da pessoa. Não estou dizendo que no Brasil é melhor — mas em um dos países mais ricos do mundo, que enche a boca pra falar de bem-estar social, é um escândalo que cuidados com saúde mental sejam relegados ao décimo sétimo plano de prioridades.
Em ASMA, saúde mental é questão central porque, nos seus quase três mil anos de vida, Vashti Setebestas foi frequentemente taxada de “doida”, simplesmente por ser uma mulher desobediente. E “ser tratada como doida” é um tema constante para qualquer mulher insubordinada, da vida real ou da ficção: é que dizer não ao patriarcado faz com que ele, em retaliação, nos desumanize, nos bestialize e torne patologia (“é doida”) justamente aquilo que comprova nossa vitalidade. Na minha terapia esse assunto é uma constante, porque cansei de contar quantas vezes fui chamada (e tratada) como “doida”, só porque dizia o que pensava, comia quem queria ou ia pra onde me dava na telha. Por outro lado, quantas vezes eu mesma reproduzi esse comportamento de maneira inconsciente, tachando outras mulheres de doidas também. A elas, peço perdão. Estou me despedindo dessa Adelaide, porque quero ser uma mulher melhor para outras mulheres — é muito mais difícil do que parece, mas Vashti me ajudou muito. Mês que vem, na parte dois dessa despedida, falo mais sobre isso.
Lidos de fevereiro e março:
. A história de uma cabra, de Perumal Murugan — escrito originalmente em tâmil, e infelizmente sem tradução para o português, esse é certamente um dos livros mais lindos, delicados e emocionantes que já li na minha vida. Li a tradução para o inglês que saiu pela Pushkin Press em 2021
. Tieta do Agreste, de Jorjamado — não, não é um livro sobre a tia gostosa que tem um caso com o sobrinho padre menor de idade, é sobre a luta (e vitória, de certa forma) de um vilarejo na fronteira da Bahia com Sergipe, contra a instalação de uma fábrica paulista em seu território (aka contra colonialismo interno). Se Jorjão tivesse escrito Tieta em 2024, ele certamente seria sobre a luta contra as multinacionais das eólicas no litoral nordestino
. Realismo capitalista, de Mark Fisher — maravilhoso, é sobre muitas coisas, mas muito sobre saúde mental e atividade criativa no capitalismo. No Brasil, tem tradução publicada pela Autonomia Literária.
E se você chegou até aqui: a pré-venda de ASMA começou semana passada e quem comprar nesse período ganha essa bandeira linda aí, exclusiva da pré-venda e com estoque limitado, que é um trechinho do quase-prefácio (que eu merma escrevi #leoninoskkk). Então arrase, depois não vai ter mais <3 Os envios começarão a partir de 25 de abril (dia do aniversário de 70 anos da revolução dos cravos, viva!).
Sei que não tá fácil pra ninguém, tudo tá caro, mas a pré-venda é uma fase importante pra definir a vidinha de um livro, então se tu tiver podendo, faz essa dívida. Se não tiver, compartilha o link da pré-venda com as tuas migleys, já ajuda muito!
E até mês que vem <3
Eu quero ASMA!! Deixa sair o lote da peona aqui!
beijos!!
A alegria que me deu ver a foto de Dilma com o Chifre, nem tem como explicar... Tô aguardando ansiosa a chegada do meu livro (teu livro hehe) aqui em casa.