Para Adília Lopes, obrigada por tudo
uma anedota sobre os 17 dias que passei tentando encontrá-la, em 2018
A morte de Adília Lopes me pegou de surpresa e me lascou muito mais do que eu estava preparada. Eu achava, de forma talvez até meio infantilizadora, que Adília era imortal — não no sentido literal, mas nesse sentido de alguém que vai viver e nos consolar por muito tempo. Ela não estava no radar de artistas que amo com as quais me preocupo — pela sua vida pacata e diligente, pela sua fé em Deus e dedicação à poesia não como busca de sucesso mas como ofício, pela vida simples e longe dos auês contemporâneos, não me passou pela cabeça que Adília era mortal, morrível. E terminamos 2024 sem ela, como se não bastasse tudo o mais que perdemos esse ano. Que danada, que plot twist.
Quem conhece meu trabalho conhece o tamanho da influência de Adília nele. Hoje deixo vocês com o prefácio que escrevi para a primeira edição brasileira do primeiro livro de Adília Lopes, Um jogo bastante perigoso, publicado pela editora Moinhos em 2018 (aliás, um shout out pra Nathan que tem feito tudo o que pode para fazer Adília brilhar no Brasil!).
Aproveito o ensejo pra informar pra vocês que vou tirar férias da internet até fim de janeiro — preciso descansar o juízo, e a forma que a morte de Adília afetou minha saúde mental foi um bom sinal de que eu preciso de um respiro. Fim de janeiro retomo as as atividades do Projeto Permínio aqui na nius (mais uma vez obrigada à família Asfora, em especial Vólia, Carlos Alberto e Fátima, pela comovente acolhida!).
Beijos e um 2025 tranquilo pra vocês!
WHO’S THAT GIRL?
prefácio de Adelaide Ivánova para o livro Um jogo bastante perigoso (Belo Horizonte: Moinhos, 2018)
Em Março de 2018, antes mesmo de receber o convite para escrever este texto, passei 17 dias em Lisboa, stalkeando duas grandes: Adília Lopes e Madonna. Madonna mora no Palácio Ramalhete, uma construção do século 17, mencionada por Eça de Queirós em Os maias.
Adília mora em Arroios, bairro residencial no norte da cidade, meio longe do centro. A odissieia madonniana foi marcada por decepções: ela estava em LA, por causa dos Oscars – informação esta que recebi tarde demais, depois de passar manhãs inteiras na parada de ônibus na frente da casa dela, ouvindo a trilha sonora do filme que dá título a este texto, e esperando por um vislumbre da rainha. O anti-ápice da aventura foi o dia em que a polícia fechou a rua: eu achei que era Madonna que ia sair da Hilux que parou na frente da casa dela, mas de dentro só saiu uma máquina pra desentupir o esgoto da calçada.
Já a odisseia adiliana foi marcada não por decepções, mas por mistério: o tempo todo eu tinha a sensação de que estava apenas um segundo tarde demais. Consegui o endereço da poetisa (sim, poetisa) como quem consegue a geolocalização do Santo Graal. “Não passa pra frente”. Claro que não, respondi. “Ah, ela vai muito ao café da Rua Não-posso-escrever-aqui”. Anotado. Quantas tardes fiz plantão por ali... Como na de Madonna, na frente da casa de Adília também tem uma parada de ônibus. E lá me aboletei, uma tarde, duas, três. Vi os vizinhos de Adília entrarem e saírem do prédio. Sentei nos cafés da vizinhança. Comi bolinhos. Fumei cigarros. Escrevi no meu diário com o menor lápis do mundo, que roubei de Matilde Campilho (e que depois devolvi).
Nada de Adília.
É que Adília é pra gente o que Cesárea Tinajero é para Arturo Belano. E não é somente o mistério que as une: é a coisa do nome. Adília Lopes é um pseudônimo, como Cesárea Tinajero é, provavelmente, o nome ficcional da não-menos-misteriosa Concha Urquiza. E Adília, como Clarice e Sophia e Fiama e Cesárea, já não precisa mais de sobrenome. Mais: tem, como a personagem de Os Detetives Selvagens, uma legião de fãs nada contidos. E escreve textos que certamente se enquadrariam no realismo visceral, escola fundada por Cesárea/Bolaño (a gente lê Adília e fica se perguntando “como pode uma cabeça funcionar assim?”: porque ler Adília é como juntar as pistas de uma charada que nunca nos é posta).
Como Cesárea, Adília está envolta, ao mesmo tempo, num ar de mistério e de mundano, de distância e e proximidade. A poetisa não é dada a auês, não faz lançamento dos seus livros, não vai a festivais, não participa de leituras, não tem conta no Facebook nem de e-mail. Mas de vez em quando, bem de vez em quando, do nada, pipoca um aceno seu para nós, pobres mortais: uma entrevista, um vídeo, alguém nas redes sociais dizendo “fui ao Café Danúbio e vi Adília saindo!” (quem não viu Adília ops Sevilha não viu maravilha).
A última aparição-relâmpago (literalmente: rápida e luminosa) foi quando a fotógrafa portuguesa Joana Dilão publicou um vídeo, de apenas dez segundos – dez! –, que em poucos dias foi visto 19 mil vezes e que teve, até o dia da escrita deste texto, 326 compartilhamentos. Os versos lidos pela poetisa fazem parte do seu mais novo livro, “estar em casa”, publicado em Março de 2018 pela Assírio & Alvim:
Só gosto das pessoas boas
quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy
sei lá o quê
se não são boas pessoas
não prestam
6/10/16
Este poema, escrito em 2016, está de mãos dadas com “Um quadro de Rubens”, que o leitor vai encontrar neste Um jogo bastante perigoso, lançado originalmente em 1985:
Vi-me comoprimida
num ajuntagente
ora eu só suporto pessoas à distância
de preferência com uma mesa de permeio
Neste poema (neste livro) está já todo o universo adiliano. As forças opostas e complementares com a qual ela trabalha. As tensões entre as leis da física e as leis do físico, entre tédio e espanto, entre divino e mundano, entre simplicidade e erudição, entre tesão e repressão, entre perversão e compaixão. Quer dizer, me deixa reescrever a primeira frase: neste poema (neste livro) está já tudo aquilo que eu acredito ser o universo adiliano.
Adília, que só foi a estudar Letras em 1983, lançou Um jogo bastante perigoso em 1985, ou seja, apenas dois anos depois de começar os estudos. A recém-nascida poetisa compreendeu rápido que muito está em risco quando se escreve poesia. O título desse livro é, portanto, uma coisa impressionante: porque a poesia (linguagem) é mesmo isso: um jogo bastante perigoso.
Dona de uma imaginação única, sua poesia é capaz de dar rasteiras espetaculares no leitor, ao misturar vocabulário da mecânica quântica e citações cifradas a/de autores clássicos, com a lógica mental das vizinhas, das tias velhas, das bonecas de louça, a vidinha em Lisboa, as osgas (lagartixas, no português de Portugal), deixando-nos desamparados – e apaixonados.
Mas não se engane: apesar da aparente doçura, vinda da observação atenta de um cotidiano que apenas na superfície não é espetacular, os versos de Adília nada têm de inocentes. A desconfiança que ela tem não é com a vida, é com a linguagem. Isso faz com seus poemas sejam quase uma denúncia contra ela. Nas palavras da própria Adília, em entrevista para Carlos Vaz Marques, em 2005: “(...) a linguagem também mascara muito o que a pessoa diz”.
Agora, me digam: quão bonita é essa colocação? Nem Wittgenstei pra dizer uma lindeza dessas, bicho.
Adília Lopes nasceu Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira em Lisboa, a 20 de Abril de 1960 (é, portanto, taurina, como Hilda Hilst e Karl Marx, outros dois heróis particulares desta que vos escreve). É uma poetisa, cronista e tradutora portuguesa. Estudou Física (reparem bem no poema “O presente”, deste livro: é uma tese sobre o gato de Schrödinger!). Abandonou a faculdade por conselho médico, devido a uma psicose esquizo-afectiva, episódio provavelmente gerado pelas questões filosóficas dentro do estudo da Física. Foi estudar letras em 1983 e começou a escrever. Em 1984 já estava sendo publicada por aí. Em 1985 veio este livro, bastante perigoso.
Espero que depois dessa leitura, cara leitora, caro leitor, sua vida mude um pouquinho (pra melhor), como mudou a minha. Escrevo esse texto de apresentação como quem tem um passarinho bem pequenininho na mão, como quem encontra uma carta antiga num fundo falso de um baú na casa da vó; e diz pra alguém: olha isso!, como quem passa pra frente algo bastante perigoso precioso.
<3
❤️❤️❤️