A obra de estreia do escritor piauiense de origem palestina Permínio Asfora se passa na Paraíba de 1930. O livro trata, grosso modo, da situação política do Estado naquela época, e da situação de quase-escravidão dos trabalhadores nos algodoais, submetidos às piores condições de vida e de trabalho pelas elites rurais. A história se situa sobretudo na cidade de Sapé, mas a narrativa descreve com sensibilidade o Brasil de então. O livro foi publicado pela primeira vez pela editora Guaíra, de Curitiba, em 1940 e teve segunda em 2015, quando foi republicado em João Pessoa, pela editora da UFPB.
Mote
O livro começa com a chegada, em Sapé, da notícia do assassinato do então governador da Parahyba, o liberal João Pessoa, em julho de 1930. O assassinato causou um alvoroço sem precedentes no Estado e é considerado uma das causas da Revolução de Trinta, que depôs o presidente Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao poder. Com a morte de João Pessoa, os liberais que o apoiavam (a elite litorânea) entraram em pé de guerra com seus opositores (a elite do interior). Apoiadores do governador assassinado cruzavam o Estado, atacando seus oponentes político-econômicos, que revidavam. No meio do fogo-cruzado, o povo.
É no bojo do pânico das elites do interior que o enredo de Sapé se desenrola, colocando em contraste a relativa (e superficial) vulnerabilidade dos donos de terra, com a absoluta e profunda vulnerabilidade dos trabalhadores rurais — que são explorados e oprimidos, independente de quem se encontre no poder, liberais ou conservadores.
Essa tensão, em todas as suas delicadas nuances (inclusive nas diferenças de raça e gênero, não somente nas de classe, o que faz de Permínio se diferenciar da maioria de seus contemporâneos) é o fio condutor desse espetacular livro de estreia, publicado quando Permínio tinha 27 anos e ainda era estudante.
Eixos
Pode-se dizer que o centro do livro são as relações entre os exploradores (o latifundiário monocultor, seus herdeiros, a polícia e a figura do agiota) e os explorados — o povo trabalhador (com atenção particular à situação das mulheres), os animais e o bioma.
Permínio descreve a condição quase-ridícula dos fazendeiros locais que, de um lado, são os superpoderosos na região, mas que são, por outro lado, subalternos do capital urbano e estrangeiro[1].
O livro traz ainda temas como o êxodo rural como opção de melhoria de vida das mulheres (que fugiam das violências que sofriam tanto de latifundiários, quanto dos próprios parentes), o racismo e a emigração de nordestinos durante o ciclo da borracha.
Um pitaco
Para mim, a beleza de Sapé está na sua calma. Ainda que a narrativa seja nauseante, por causa das terríveis injustiças que descreve, existe alguma coisa na escrita de Permínio que faz com que tudo seja exposto de forma tranquila — nós, leitores, é que ficamos encaralhados com o desenrolar da trama, mas ele mantém o controle da narrativa o tempo todo, o que só comprova sua maestria. É que, apesar de ter um lado (Permínio foi, como se sabe, um defensor do direito à terra até o fim de sua vida), ele nos deixa tirar nossas próprias conclusões. Permínio sabe que o leitor é um sujeito autônomo e ativo, não um fantoche passivo do autor.
Essa calma talvez venha pela construção do caráter dos personagens, ou dos diálogos, que são fieis aos sujeitos e ao vocabulário do Nordeste rural, mas sem os orientalismos da rede Globo. Talvez essa calma venha do imenso respeito com o qual Permínio descreve o ethos do trabalhador nordestino, consciente de si e de sua exploração, mas ligado a um código de honra e de dever que é, às vezes, seu próprio e pior inimigo — tantas vezes, lendo Sapé, me lembrei de como vovô falava e se comportava, e da forma como ele olhava o mundo e respeitava hierarquias, mesmo quando era contra a existência delas.
Permínio demostra isso tudo sem juízo de valor, mas ciente das injustiças e da luta política por terra. No maravilhoso posfácio da reedição de Sapé pela UFPB, a professora Wilma Martins de Mendonça contextualiza:
“Matreiramente, o narrador asforiano sinaliza, em meio à opacidade discursiva que norteia a descrição [do personagem] Valentim, para os inícios do ingresso, no mundo camponês, do Partido Comunista Brasileiro, [que] desde 1928 começara a enviar seus militantes para regiões agrárias do país, notadamente Nordeste e de São Paulo, com o desafio de criar condições para a organização dos trabalhadores rurais. Dessa ação surgiriam as primeiras células camponesas, ligadas ao PCB (...) que são a gênese das Ligas Camponesas”.
Não preciso nem dizer que, por tudo isso e muito mais, Sapé em particular e obra de Permínio em geral são uma fundamental influência no meu trabalho político/poético.
Recepção e consequências políticas
O livro foi interditado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Getúlio Vargas, pelo conteúdo social e humano, imediatamente após sua publicação. O autor foi acusado nacionalmente, em horário nobre, pela rádio Voz do Brasil, de ser “subversivo e imoral”. Permínio acabou por ser banido do cânone literário brasileiro, por motivações de ordem ideológica e política[2].
Mesmo assim, entre 1940 e 1941, o livro conseguiu receber algumas resenhas. No acervo da Hemeroteca da maravilhosa Biblioteca Nacional, encontrei pelo menos 16 delas, 12 das quais positivas, publicadas tanto em revistas literárias, como em jornais diários de renome, como o Diário de Pernambuco e o Correio da Manhã. Os textos foram assinados por, entre outros, Alfio Ponzi, Álvaro Lins, Eloy Pontes, Lêdo Ivo, Mario Sette, Octavio de Freitas Júnior e Rubens Requião.
Dentre os que não gostaram do livro estão Álvaro Lins, Lêdo Ivo e Mario Sette, que dizem, entre outras coisas que Sapé sofre de excesso de realismo, e de ser mais ideologia do que romance (ainda hoje há críticos que pensam igualzinho, kkk, que preguiça dessa gente). Tudo certo. Mas aqui vale abrir um parênteses, para mencionar que, em alguns nos jornais do sudeste, apareceram críticas que são mais exercícios públicos de xenofobia, do que crítica literária.
O carioca Jornal do Commercio, por exemplo, em resenha obviamente não assinada, fala dos “personagens caipiras” que, por sua vez, usam uma “syntaxe que não é a nossa” (como se o Nordestinês não fosse português e o carioquês fosse o português correto? kkk me poupem).
Mas deixemos os preconceituosos de lado e encerremos esse texto falando do que interessa.
No posfácio à reedição de Sapé, a autora nos oferece pista valiosa sobre os motivos pelos quais Permínio continua ignorado, até hoje, do cânone literário. Segundo ela, a censura do Estado Novo contra Sapé “foi e continua a ser determinante para o laconismo crítico que cerca essa narrativa e os romances posteriores do autor, circunscrevendo-os, consequentemente, a um pequeno público-leitor. O amordaçamento de Sapé se arrastaria tempo afora (...)”. E arremata: “Delituoso, o silenciamento do romance de Permínio Asfora constitui, na realidade, um crime de lesa-memória”[3].
Já passou da hora, portanto, de fazermos justiça a esse combativo autor, e essa niusleder é minha humilde tentativa de espalhar a palavra asforiana, e ajudar a dar a ela o lugar de destaque que merece, não somente pela qualidade da literatura, mas pelos valores humanistas que ela representa <3
Para a escrita desta série de posts, agradeço a Vólia Asfora, filha de Permínio, e Carlos Alberto Asfora, seu sobrinho, pela atenção e paciência com minhas perguntas!
[1] Aqui vale recomendar os escritos de Manuel Correia de Andrade, Perry Anderson e Mike Davis que, em diversos textos, trataram sobre a economia algodoeira, o papel subalterno do Brasil como fornecedor de matéria e a re-colonialização do país pelos EUA e Reino Unido, na fase de comércio de algodão e borracha.
[2] Dados da apresentação da segunda edição de Sapé (UFPB, 2015)
[3] Posfácio da segunda edicao de Sapé (UFPB, 2015)
Obrigado por essa pesquisa, amiga. Sou filho, neto e bisneto de piauienses. Vai que sou quase parente do Asfora.
Meu avô ( Perminio Asfora) foi realmente um homem incrível.
Que suas lindas obras possam realmente ser conhecidas por todos
Gratidão pela suas palavras e apoio para que esse Grande Romancista jamais se perca no tempo
🇵🇸🤍