Noite Grande
a primeira obra literária brasileira com um protagonista Palestino é de Permínio Asfora, claro <3
Se em seu primeiro livro, Sapé (1940), Permínio Asfora usa a cidade paraibana onde passou a infância para falar da desigualdade no acesso à terra, em seu segundo, Noite Grande (1947), ele aborda o mesmo assunto — mas, dessa vez, a partir da experiência de um indivíduo. Mais precisamente: a de Sales Mussa Asfora, pai de Permínio, quando da sua chegada ao Brasil, no comecinho do século 20, vindo da Palestina para o Ceará.
Noite grande é a primeira obra literária brasileira que possui um protagonista Palestino e Permínio foi o primeiro brasileiro de ascendência palestina a publicar um romance no Brasil.



Mote
Ao chegar no Brasil, Jorge/Sales inicialmente se instala na casa de um parente no Ceará, aonde chega sozinho e muito jovem, e trabalha como atendente, caixeiro e vendedor. Logo ele ganha a simpatia de seu primeiro chefe, conterrâneo Palestino, pelo seu esforço e ética de trabalho (“O gosto para trabalhar, que em Jorge era constante, deixou [seu] patrão empolgado”, escreve Permínio sobre seu pai/personagem, na página 18).
Jorge/Sales então recebe um convite para ir trabalhar com outro comerciante no Piauí, e parte para o estado. Lá, o protagonista consegue, à custa do próprio trabalho, juntar dinheiro e comprar um pedaço de terra, com o intuito de produzir borracha, então chamada de “ouro branco”. É aí que a história começa mesmo.


Eixos
Se a vida de Jorge/Sales como imigrante pobre e não-europeu já era dura, é a partir daí que ela se complica. Ao virar ele mesmo dono de terra, Jorge/Sales (que tem o que tem devido unicamente ao esforço de seu trabalho) se vê envolto em disputas políticas e territoriais com os herdeiros locais (que têm o que têm simplesmente porque nasceram numa família rica).
Para Jorge/Sales, o direito à terra pela via hereditariedade parece (e é!) absurdo, e é precisamente esse absurdismo que Permínio tenta dar conta em Noite grande. Não é à toa, portanto, que ele dedica o livro ao seu pai: “a quem devo as primeiras lições sobre os problemas agrários do Brasil”.
Entre idas e vindas violentas e alianças duvidosas, Jorge/Sales acaba sendo forçado a compreender que o vespeiro em que se meteu tem menos a ver com perseguições pessoais contra ele, mas com o tecido socioeconômico do Brasil, que continuava (e continua) colonial. Nesse contexto, de capitalismo dependente, o acesso à terra via herança, na forma do latifúndio improdutivo, se mantém a expressão máxima de diferenciação de classe. E consequentemente Jorge/Sales, apesar de suas tentativas de resistir às humilhações, é colocado de volta no seu lugar de classe, pelas estruturas de poder locais, protegidas pela famigerada Lei de Terras de 1850.
Nas bordas dessas disputas estão todos os outros oprimidos: as mulheres, os velhos, os animais, o bioma – e suas diversas formas de resistir. Todas essas entidades aparecem no livro, acompanhadas de questionamentos em torno de xenofobia e misoginia que seguem importantes até hoje. Não ouso dizer que Permínio era um autor feminista e antirracista, mas é possível atribuir a ele consciência e empatia com quem sofre essas opressões, que ele recrimina em diversas passagens.


Um pitaco
No prefácio à primeira edição de Sapé, Permínio escreve: “Alguém já disse que a história de todos os homens é semelhante: nascer, sofrer e morrer. Nascer e morrer são fenômenos identicamente naturais. Sobre as várias formas de sofrimento é que não podemos dizer o mesmo”.
É esse mesmo espírito que guia a escrita de Noite grande. Partindo da trajetória real de um imigrante Palestino, Permínio defende a ideia de que o sofrimento de um homem (Noite grande) ou de um povo (Sapé) não são coisa do destino — são, antes, consequência de decisões tomadas por aqueles que detêm o poder. “Triste é morrer de dor de barriga. O natural é viver com dignidade”, escreve Permínio na página 81 de Noite grande.
A complexidade da trama se dá ainda no próprio papel ambíguo de Jorge/Sales, que representa o sonho do self-made man: “No dia em que saí de casa foi pra lutar pela vida”, diz o personagem na página 25. Mais para frente, assim descreve Permínio o instinto de sobrevivência Jorge/Sales: “[Jorge] saiu para alugar uma casa e, como não encontrasse, resolveu levantar uma”, p. 30).
Tendo chegado ao Brasil com uma mão na frente outra atrás, ele representa o homem que vive do próprio trabalho — até que passa a viver do trabalho dos outros, quando consegue comprar, com o próprio dinheiro (não por herança) um pedaço de terra. É nesse momento, em que ele vai de empregado a empregador, que um plot twist de de ordem moral acontece — mas sobretudo um de classe acontece. Nessa virada, temos a oportunidade de fazer perguntas sobre propriedade privada, direitos trabalhistas do trabalhador rural, divisão internacional do trabalho, os limites do assim-chamado empreendedorismo etc.
A mudança no lugar de classe de Jorge/Sales não é explorada por Permínio, que se foca nas injustiças sofridas pelo personagem e pelos seus vizinhos nas mãos dos inimigos que têm em comum (o latifúndio improdutivo e a polícia). O que Permínio faz, aqui, como em Sapé, é apresentar o caso, e desafiar o leitor chegar às próprias conclusões.
Noite grande, apesar do título, é cheio de esperança. Na página 80, Permínio escreve: “A justiça, afinal de contas, faz parte do nosso corpo, está viva dentro de nós” e o livro termina [AVISO DE SPOILER] com um diálogo entre Jorge e sua esposa, Clara (inspirada na mãe de Permínio, Maria Elisa): “Só conheço mesmo uma força que leva o homem para frente”, ele afirma, e ela completa: “É a esperança”.



Recepção crítica e política
A primeira edição de Noite grande foi publicada em 1947, tinha 352 páginas e recebeu críticas positivas no lançamento e década seguinte. Foram escritas por, entre outros, Gilberto Freyre1, Silvino Lopes2 e pelo o imortal R. Magalhães Júnior3. O jornalista português Armando Erse de Figueiredo, mais conhecido como João Luso, chegou a dizer que há uma "espécie de perfeição" na narrativa, tal a forma como descreve os carnaubais piauienses, tão pouco conhecidos pela maioria dos brasileiros (perdi o carai do link dessa ref, quando achar atualizo aqui!). Só a resenha da revista Cigarra, também positiva, que saiu em assinatura (clica aqui para lê-la).
Para além dos aspectos literários, para mim é difícil deixar de pensar o livro sem levar em consideração o fato de que ele apareceu no mesmo ano em que o governo brasileiro colocou na ilegalidade o PCB — partido com o qual Permínio, não sendo filiado, simpatizava e onde tinha bons amigos (entre outros, Jorge Amado). No fim de 1947, os mandatos dos parlamentares filiados ao PCB no Congresso foram cassados, inclusive o de Prestes, que tinha conseguido se eleger senador batendo recorde no número de votos. A repressão contra o partido foi acompanhada por uma política externa que estreitou os vínculos entre Brasil e Estados Unidos (aliança essa que culminaria com golpe de 64). E os EUA, não podemos esquecer jamais, foi crucial no desenrolar da Nakba, que aconteceria no ano seguinte ao lançamento de Noite grande.
Mas é importante ressaltar que as condições para que a Nakba acontecesse já estavam postas muito antes de 1948, e Permínio sabia disso. Acredito que Noite grande seja não apenas seu desejo de contar a vida do pai imigrante, mas também um esforço de registrar, via literatura, as injustiças sofridas pela Palestina.
Na página 89, por exemplo, Permínio escreve:
[Jorge] não tinha pátria nenhuma, pois a terra onde nascera vivia sempre dominada. Um dia com a Turquia e agora com a Inglaterra. (...) Quando seria que cada país, por pequeno que fosse, seria senhor de suas ventas? A mãe [de Jorge] dizia com ênfase: “A Palestina é o melhor lugar do mundo”. Melhor por quê? “Porque” – ela dizia – “é o berço do cristianismo. Mesmo sendo a Terra santa, que vantagem havia nisso se não pertencia aos seus filhos, se era fraca e sem voz? Os estrangeiros dominavam, se apoderavam de tudo e ainda espalhavam que estavam civilizando”.
Pode-se dizer, por fim, que Noite Grande é um romance sobre as tragédias coloniais de dois povos muito semelhantes: o Palestino, confrontado há tempos com o saque imperialista; e o Nordestino, compelido a viver e sobreviver à violência do latifúndio canavieiro no litoral, e o latifúndio agropecuário no sertão, que são igualmente fruto da violência colonial-escravocrata. Há, no romance, um ethos de identificação solidária entre o deserto da Palestina e o semiárido brasileiro — ethos esse que também se estende, obviamente, à identificação política e a um tipo específico de realismo mágico, que tem a ver com a força coletiva de um povo, quando este está profundamente ligado ao seu território.
Para a escrita desta série de posts, agradeço à família Asfora — em especial Vólia, Carlos Alberto, Fátima e Martha, pela comovente acolhida! Além disso, um beijo de obrigada pra Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com seu arquivo precioso!
Gratidão 🌹
Excelente, cara. O texto, a pesquisa e o tanto que agora tô sabendo disso tudo. Obrigado demais