Na página 54 da edição que eu tenho de 100 anos de solidão, tem assim:
Mas a índia explicou-lhes que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia nenhum cansaço, mas sim a sua evolução inexorável até chegar a uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se habituava a seu estado de vigília, começavam a apagar-se de sua memória as recordações de infância, depois o nome e a noção das coisas e, por fim, a identidade das pessoas e até a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotia sem passado.
O grande trunfo deste grande livro não é contar a história de um país, usando como alegoria para tal o destino de uma família, ao longo dos séculos. Antes, o mérito de Gabriel García Márquez está em tratar o esquecimento e o apagamento do passado como tragédia coletiva – e sobre a suma importância de poder saber de onde se vem, para se poder viver plenamente. É sobre isso que quero falar hoje.
Depois de um longo hiato, eu voltei a fazer terapia em 2020 porque comecei a sentir um pânico irracional de que, de tanto tentar esquecer meu passado, para poder ser feliz apesar dos traumas, eu ia acabar tendo Alzheimer na velhice (hashtag a nóia delash). O processo terapêutico me deu confiança de olhar para os meus traumas individuais considerando também os familiares (inclusive os ancestrais, que aconteceram muito antes de eu nascer) e a luta de classes - coisas que, por sua vez, me deram coragem para, finalmente, sistematicamente, tentar descobrir a história “misteriosa” dos meus avós maternos, principalmente de meu avô.
Mas não há nada de misterioso no passado deles: o que encontrei foi simplesmente um vazio. À medida que pesquisava, ser confrontada com esse apagamento histórico das famílias pobres foi tão revoltante e assustador que esse processo tá virando livro. Esse vazio me parte o coração, enquanto indivíduo, e me dá ódio de classe, enquanto sujeito político: eu nunca vou saber nada da infância do meu avô, nem dos antepassados do meu avô, não porque eles não quiseram se registrar, se fotografar, escrever e falar de si – mas porque apagar a história de vida e de luta dos de baixo é projeto político. Vovó morreu em 04 de março de 2022. Vovô morreu em 01 de março de 2003. E eu já não posso lhes perguntar mais nada – e saber disso é também uma forma de luto.
Quando Brasília foi invadida por excrementosbolsonaristas em janeiro de 2023, Kléber Mendonça Filho escreveu algo interessante em seu Twitter: “Não importa como, o Brasil sempre chega no tema destruição dos arquivos e da imagem nacional”. Entendo o que ele quer dizer, e sequer acho que ele está errado, mas não é o “Brasil” que faz isso: são todos os Estados capitalistas, porque o apagamento do passado é arma potente da burguesia.
Ruy Barbosa mandou queimar os papeis da escravidão, não porque ele queria proteger os ex-escravizados, como alguns dizem, mas porque assim se poderia apagar o passado escravocrata da elite brasileira, anistiando-a (e impedir ex-escravizados de demandar e receber indenização). Fast forward 135 anos, chegamos no dia 3 de janeiro de 2023, quando uma das primeiras medidas da (desprezível) governadora bolsonarista Raquel Lyra foi fechar o arquivo público de Pernambuco. E por que ela fez isso? Ora, porque o povo é aquilo que sabe de si – e um povo que tem as ferramentas para saber de si, e se conhece, conhece seus inimigos. Por outro lado, não saber do nosso passado nos deixa a mercê dos outros. Esse apagamento é, portanto, também um processo de autodefesa da burguesia. Ah, vale dizer o mesmo sobre processos de anistia irrestrita: foi ruim para Espanha, foi ruim para o Brasil do passado e será péssimo para o Brasil do futuro, caso Bolsonaro e a familícia continuem impunes.
Mas, para terminar esse post num tom positivo, queria lembrar que 100 anos de solidão também fala de como a capacidade de acessar memórias permite enxergar o presente, até mesmo quando se perde a visão (a real ou a metafórica). É por isso que, de um lado, enquanto eles tentam apagar nosso passado, precisamos incentivar e construir mais projetos de educação popular, de alfabetização de jovens e adultos, de formação de leitores e escritores, e incentivar o registro – escrito, oral, impresso e audiovisual – da vida e das tecnologias sociais dos de baixo. Registrar a própria história, contada nos próprios termos, é uma arma potente do proletariado. O cuidado que os movimentos sociais têm com o tema é prova disso: do MTST à DWE, da Comissão Pastoral da Terra, ao MST, ao Sindicato de Inquilines de Londres, e tantas outras mundo afora, aglutinações populares tentam deixar registrado o maior legado possível. É que (meio que parafraseando Linton Kwesi Johnson), poder escrever a própria história é uma forma de vitória <3
Lidos do mês
esse mês li um montão de Adília Lopes – graças à minha amiga Fernanda, que me deu de presente de 40 anos os livros que faltavam na minha coleção, a saber:
Z/S (Lisboa: Averno, 2016)
Bandolim (Porto: Assírio & Alvim, 2016)
Dias e dias (Porto: Assírio & Alvim, 2020)
Pardais (Porto: Assírio & Alvim, 2022)Reli Máquina de Eleazar Venancio Carrias (São Paulo: Urutau, 2021) (esse livro inclui os versos “Para meus vizinhos eu sou o vizinho/ que ainda liga o rádio” – que acho muito bonitos)
Esse mês não li nenhum livro de teoria mas, como sempre, li um milhão de artigos científicos. Vocês sinteressam por isso? Se sim, avisem aí nos comentários que posso colocar aqui, todo mês, os links!
A nostálgica que vos escreve, por aí
Um trecho desse meu próximo livro, citado acima, foi publicado na revista A palavra solta, em setembro de 2022, ó.
Falando em Adília: quando Adília Lopes (o personagem) fez 30 anos, escrevi um texto sobre ela, para o Suplemento Pernambuco. Foi em abril de 2013 - o que me faz lembrar que Adília Lopes (o personagem) faz 40 anos mês que vem!
Na edição de março de 2023 do Suplemento, saiu a tradução que fiz do poema Rolex für Alle, do rapper alemão Disarstar, que chamei de Juliet pra geral.
Esse mês fui até Lisboa para participar da conferência sobre direito à moradia, organizada pela iniciativa Chão das Lutas e Fundação Rosa Luxembrugo. Fui lá compartilhar minha experiência de organizadora comunitária na campanha de expropriação de grandes empresas de aluguel em Berlim, ao lado do Referendo Pela Habitação em Lisboa.
Nesse exato momento estou em Madrid, a convite da Embaixada do Brasil, para uma leitura com a fantástica Luiza Romão na Universidad Complutense. Vai ser no dia 29 de marco, a partir das 15h. Se tu tiver em Madrid, aparece! A atividade é aberta e gratuita e aqui tu fica sabendo mais.
E se você chegou até aqui e tá se perguntando “que djabéisso?”, eu explico: esse ano, se estivesse vivo, o meu blog vodcabarata ponto blogspot completaria 18 anos. Com a efeméride da maioridade da Dra. Vodca em mente, e muito inspirada na deliciosa newsletter da minha amiga Gisela Gueiros, minha ideia é reviver um pouco do espírito do finado blog (que era tipo Sex and the city sendo que nos trópicos, ou seja, Sex and Recife kkk), com 12 posts temáticos, no decorrer de 2023, e depois partir pra outra. Gostasse? Janeiro foi sobre os corno, fevereiro foi sobre fotografia e mês que vem tem mais! Assina aqui, mulé:
meu avô paterno morreu mês passado, aos 104. tô aqui lendo seu texto muito emocionada, porque já tem uns anos que eu tento entender um pouco mais do passado dele, mas não consigo. tudo o que sei tem cores de realismo fantástico (suponho que porque a gente não tenha muita representação de vidas parecidas com a vida dele por aí - talvez por isso meu espanto quando assisti "Arábia" no cinema, essa sensação inesquecível de ver a vida do meu pai, dos meus tios, a casa da minha avó, a forma de falar - e de não falar), e me dá uma tristeza enorme pensar que numa tarde qualquer, há alguns anos, eu mostrava imagens aéreas do google pro meu pai, quis mostrar a cidade onde ele nasceu e ele me disse: a gente podia levar seu avô lá algum dia, quem sabe ele não reconhece a casa, ele nunca soube o que foi feito dela. meu avô e minha avó saíram de Barra Longa quando meu pai tinha um ano de idade. reza a lenda (fantástica, real) que saíram a pé e foram como deu até João Monlevade, onde a então Belgo Mineira contratava trabalhadores para a siderúrgica. A Belgo que empregou meu avô, meus tios, meu pai - a vida toda.
meses depois dessa conversa com meu pai, Barra Longa foi varrida pela lama.
3. sim, eu me interesso por isso. :)
Ivi, seus links mais longos aparecem como frases quebradas no texto. Sinto muito pela ausência de vestígios na sua história, infelizmente isso é tão comum nesse país que parece que até é normal. Adorei o texto do mês e a fotinha da mini vc. Beijo