O tema da newsletter de maio ia ser trabalho, eu dei spoiler no instagram, o texto está escrito, a playlist está feita. Mas ontem eu levei uma queda e gritei – e aí pronto, começou a loucura. Não, eu não bati a cabeça e, não, a loucura não está em mim: doido é quem não grita.
Na Alemanha a única instituição verdadeiramente democrática, e funcional, é a da mudança de casa. Explico: pela forma como o capitalismo se desenvolveu por aqui e consequentemente as particularidades locais da luta de classes, não há tanto profissões como as de porteiro, faxineiro, frentistas etc., trabalhos tão comuns em países colonizados, resquícios de escravidão (os resquícios na Alemanha são outros, mas isso é tema pra uma newsletter inteira). Assim, quando uma pessoa se muda, a não ser que ela seja muito rica, a mudança é feita com os amigos – um grupinho desmonta os móveis, outro baixa as caixas, duas ou três pessoas vão encaixando os cacarecos num caminhãozinho alugado, uma pessoa dirige etc. etc. etc.
Ontem eu estava ajudando uma amiga na mudança dela, integrando o time de baixar as caixas, e acabei escorregando um lance de escada inteiro, até chegar no térreo, agarrada com um móvel de madeira, pequeno mas fatal. Caí com a lombar, o cóccix espremido nas quinas, o gaveteirinho esmagando minha coxa direita. Por causa disso, eu gritei, e gritei alto, porque me assustei, porque doeu.
Pronto. Meu grito desestabilizou o grupo: gargalhadas de uns, incômodo escancarado de outros. As reações me fizeram sentir muita vergonha da minha queda, do meu grito, do meu desengonço. Por algum motivo ninguém pôde, simplesmente, prestar atenção na acidentada - foi o grito o protagonista. De todos, só uma pessoa teve uma reação normal: você tá bem?, e me ajudou a levantar, e seguiu sua vida. Um santo. O resto se expressou misturando risinhos a estranhez. O grito coisou a sociedade. Nossa, mas que grito, será que quebrou o pé? Nossa, mas que grito, achei que tinha caído pela janela do quinto andar. Nossa, que grito, achei que tinha sido mais grave. Nossa, que grito.
Nossa, eu endoidei. Pior é que estou ciente é que nem durou tanto tempo assim, ninguém ficou 10 minutos rindo ou fazendo comentários: entre queda, chacota, desconforto, socorro e eu me levantar, toda tronxa, dois minutos devem ter se passado, se muito. Mas estar diante do desconforto dos outros por causa de uma coisa tão normal (um grito) me fez ficar as 24 horas seguintes obcecando. É que o grito, vocês sabem, é meu canteiro de obras, meu horror, meu sonho, meu arrependimento, meu objetivo, minha derrota. Escrevi um livro inteiro porque não gritei, porque fui acusada de não ter gritado o grito exigido pela etiqueta da boa vítima.
a sentença
duas releituras de duas odes de ricardo reis
I
pesa o decreto atroz, o fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.
pesa como bigorna em minhas costas:
um homem foi hoje absolvido.se a justiça é cega, só o xampu é neutro:
quão pouca diferença na inocência
do homem e das hienas. deixem-me em paz!
antes encham-me de vinhoa taça, qu'inda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é tal sentença:
a mulher é a culpada.II
pese do fiel juiz igual sentença
em cada pobre homem, que não há motivo
para tanto. não fiz mal nenhum à mulher e
foi grande meu espantoquando ela se ofendeu. exagerada, agora
reclama, fez denúncia e drama, mas na hora
nem se mexeu. culpa é dela: encheu à brava
a garbosa cara.se a justiça é cega, só a topeira é sábia.
celebro abonançado o evidente indulto
pois sou apenas homem, não um monstro! leixai
à mulher o trauma.in o martelo (rio de janeiro/lisboa: garupa e douda correria, 2017)
Eu devia ter gritado, mas gritar também não pode: não incomode: não desorganize o silêncio organizado. Quantas vezes as pessoas já me olharam em desagravo, a mãozinha em um dos ouvidos, as cabecinhas virando pro lado, como se eu tivesse metido uma caneta Bic dentro de orelhas sensíveis, por ter dado um gritinho por um motivo qualquer, ou por ter falado alto demais no telefone ou com um interlocutor qualquer.
Me lembro da poeta austríaca Ingeborg Bachmann, que quase enloqueceu (quase?) pelos silêncios que a Europa do pós-guerra, a Alemanha em particular, e o patriarcado em geral, lhe impuseram:
eu perco meus gritos
como uma pessoa perde
seu dinheiro, suas moedas,
seu coração, meus gritos mais
altos eu perco em
roma, em todo lugar, em
berlim, pelas ruas eu
efetivamente perco
meus gritos, até que
meu cérebro se cobre
de névoa vermelha, eu perco tudo,
a única coisa que eu
não perco é esse pavor
de saber que uma pessoa
pode perder seus gritos
todos os dias
em qualquer lugarpoema de Ingeborg Bachmann traduzido por mim, para a revista Escamandro
Grite, não grite, grite, não grite: mulher não pode nada. Imigrante não pode nada. Mulher imigrante não pode absolutamente nada.
Quando eu era adolescente, sobrevivi aos traumas de uma infância de abusos e negligências por causa do grunge. Eu podia gritar ouvindo Hole – vocês, que nasceram nos anos 2000, não fazem ideia do que é, num mundo abarrotado de homens berrando na vida real e na música, ter uma mulher GRITANDO MAIS ALTO QUE TODOS ELES: Courtney Love, meu farol.
Eu não podia gritar como ela em nenhum contexto, mas eu gritava-sem-gritar, ouvindo, de walkman, a fita cassete pirata do Live through this na caminhada pra escola, com o ódio, com minha pulsão de ódio. Gritar de verdade eu gritava loucamente todos os sábados, das 22h às 5h da manhã, na Non Stop, na Rua da Guia, centro do Recife. Os anos 90 foram horríveis, mas foi aquela época esculhambada, em que menores de idade entravam numa boate sem ninguém controlar a identidade, onde você podia beber licor de menta e fumar maconha e cheirar loló e berrar na pista de dança contra a crueldade de uma sociedade absolutamente terrível com meninas. E voltava de manhã sem voz, mas cheia de vida.
Gritar aos sábados era a melhor coisa que podia existir: com Hole, Marilyn Manson (eu sei, mas naquela época ele não era o FDP que é hoje), Rage Against the Machine, Placebo: com todas essas coisas que o imperialismo cultural fez a gente engolir e consumir, mas que ajudavam a gente a viver (enquanto a cultura popular pernambucana, eternamente maravilhosa, era escanteada por nós, adolescentes e com vontade de morrer, numa metrópole latino-americana cheia de vida, mas manchada pela autoestima baixa que a xenofobia anti-nordestina fazia a gente sentir contra nós mesmos).
Todo sábado eu chegava na pista com as mesmas dores, que eram curadas com o mesmo setlist, que nunca mudava. A entrada era 3 reais, 5 reais com consumação, algo assim. Se ficasse até de manhã, dava pra voltar de madrugada num bacurau, ou a pé, em grupo, ou de carona no carro abarrotado do irmão da melhor amiga — então com 10 reais dava para entrar no bar, beber dois drinks safados e voltar pra casa pronta pra semana de ausências, negligências e importunações sexuais, que eu sabia que me esperavam.
Os gritos da adolescência eu fui perdendo na vida adulta, à medida que ia me adaptando às demandas – até viver numa espécie de silêncio obediente que eu achava ser voluntário: eu queria simplesmente “dar certo na vida”. Quando comecei a trabalhar, com 19 anos, eu parei de gritar. Foi isso.
39
pra Cida Pedrosa0)
eu também perco meus gritos
Ingeborg Bachmann
como uma pessoa perde
a chave a compostura
meus gritos mais
altos eu perco em todo lugar,
em berlim, pelas ruas e
na reunião do partido lá
eu muitas vezes perco meus gritos
depois de muito não gritar
às vezes meu cérebro se cobre
de esperança vermelha
mas é tanto macho e tanto
machismo que por mais que eu lute
eu às vezes acho que perco tudo
de novo
a única coisa que eu
não perco é essa certeza
de saber que uma pessoa
mesmo cansada não pode
abrir mão de seus gritos
e um xarope sabor feminismo
que cuide da nossa garganta
é o que todas as pessoas precisamtrecho do poema #39 de chifre (juiz de fora: macodo, 2021).
Até que um dia não gritei, fui duramente punida por não ter gritado, e por anos fiquei sem entender: ué, é pra gritar ou não?
É impossível dar uma resposta certa quando a pergunta está errada. Não é sobre poder ou não poder gritar. É sobre o que pode o oprimido: à vista de quem oprime, nada. Nesse contexto, a única coise que podemos, então, é não aceitar as correntes, já que não temos nada a perder além delas: que ninguém seja obrigado a nada, nem ao barulho, nem ao silêncio.
Quando o grande, o imenso Padre Reginaldo Veloso foi expulso da igreja católica, em 1989, por suas convicções políticas e atividades militantes, um dos refrões dos protetos contra a expulsão, organizados pelos fieis da igreja de Nossa Senhora da Conceição, na periferia da Zona Norde de Recife, dizia: “Mãe, teu povo não chora, grita”. A playlist aí em cima é também pra chorar e gritar <3
Lidos do mês de maio:
. Poesia comprometida com a minha vida e com a tua, de Thiago de Mello (Lisboa: Moraes Editores, 1975)
. Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos (1953) (Lisboa: Portugália Editora, 1974)
. Brasil, uma trégua, de Regina Azevedo (São Paulo: Círculo de Poemas, 2023)
Lidos do mês de abril (a edição do mês passado foi especial e não teve lidos do mês):
. Ex-voto, de Maíra Dal’mas (São Paulo: Urutau, 2022)
. Coroa da terra (1946), de Jorge de Sena (Porto: Assírio & Alvim, 2021)
. Monstros e monstrengos do Brasil (1937), de Afonso d'Escragnolle-Taunay (São Paulo: Cia. das Letras, 1998) (uma decepção esse livro véi)
E se você chegou até aqui e tá se perguntando “que djabéisso?”, eu explico: esse ano, se estivesse vivo, o meu blog vodcabarata ponto blogspot completaria 18 anos. Com a efeméride da maioridade da Dra. Vodca em mente, e muito inspirada na deliciosa newsletter da minha amiga Gisela Gueiros, minha ideia é reviver um pouco do espírito do finado blog (que era tipo Sex and the city sendo que nos trópicos, ou seja, Sex and Recife kkk), com 12 posts temáticos, no decorrer de 2023, e depois partir pra outra. Gostasse? Janeiro foi sobre os corno, fevereiro foi sobre fotografia, marco foi sobre memória, abril foi uma carta de despedida para minha casa antes de um despejo e mês que vem tem mais! Assina aqui, mulé:
Espero que você esteja bem! E veja só a coincidência: Quinta-feira eu caí na estação Schönhauser Allee. Gritei também! É só lendo o seu texto é que entendi o constrangimento que tomou conta de mim. As pessoas olharam, mas sem saber o que fazer. Levantei muito dolorida mal conseguindo andar, mas envergonhada porque caí. Mas agora a ficha caiu: fiquei envergonhada porque gritei. E alto.
Que texto, Adelaide! Me arrebatou. E abraçou ao mesmo tempo. Indiquei na minha newsletter. Um beijo!